quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Israelenses em Berlim

Israelenses aprendem a amar a nova Berlim

Doron Halutz
Berlim (Alemanha)


Durante décadas, a sombra da historia e do Holocausto levou muitos israelenses a boicotarem a Alemanha. Atualmente, porém, uma nova geração de israelenses está descobrindo Berlim como um centro de artes e a capital europeia da diversão. Com a sua literatura, arte, cafés e vida noturna, os israelenses já se tornaram uma presença vibrante na cidade.



Toda sexta-feira à noite, os ouvintes da estação de rádio “Alex”, em Berlim, podem escutar o radialista falando em hebraico. A voz atrás do microfone no espaçoso estúdio situado no bairro de Wedding, na capital alemã, pertence a Aviv Russ, um israelense de 33 anos de idade que mudou-se para Berlim cinco anos atrás, e criou o programa de rádio “Kol Berlin”, ou “Voz de Berlim” em hebraico, um ano mais tarde.



Neste dia do início de dezembro, ele está sentado com o seu convidado de muitas ocasiões, Alexander Uhlmann, e fala sobre o escritor israelense David Grossman, o mercado Hanukkah, em Berlim, e a imigração, tudo isso em alemão fluente. De vez em quando Russ faz uma pausa para um resumo em hebraico, e, em determinado momento, ele faz uma interrupção para explicar algo aos seus ouvintes israelenses.



“O que Alex está tentando dizer”, explica ele, “é que os imigrantes russos em Israel vivem em guetos. Mas Alex não deseja usar essa palavra. Isso é compreensível – somente nós, israelenses, podemos usá-la. Bem, estou brincando”.



Esta é uma ótica unicamente israelense em uma cidade que no passado abrigou uma robusta comunidade judaica, repleta de intelectuais, escritores e músicos. Até recentemente, um número relativamente pequeno de israelenses vivia em Berlim, mas a comunidade israelense tem crescido consideravelmente nos últimos cinco anos. As estatísticas oficiais indicam que apenas alguns milhares deles proporcionam um registro dessa tendência, já que muitos israelenses entram na Alemanha com passaportes europeus (quando países europeus orientais passaram a integrar a União Europeia, muitos israelenses puderam obter passaportes europeus já que os seus pais ou avós moravam nesses países antes da Segunda Guerra Mundial).



Uma nova geração retorna a Berlim



Mesmo assim, Yinam Cohen, um porta-voz da Embaixada de Israel na Alemanha, calcula que entre 10 mil e 15 mil israelenses residam na cidade. “Este é um fenômeno relativamente novo”, diz ele. “Podemos apresentar todos os tipos de explicações pseudo psicológicas para isso, como, por exemplo, uma erosão das barreiras históricas, ou um entusiasmo exagerado em relação a um novo local ao qual existe boa acessibilidade”. Atualmente há 22 voos semanais entre Tel Aviv e Berlim, observa Cohen.



Berlim já abrigou algumas das figuras mais importantes da literatura hebraica, entre elas o ganhador do Prêmio Nobel, S.Y. Agnon, que emigrou da região que mais tarde tornar-se-ia o Estado de Israel para Berlim em 1912, e Leah Goldberg, ganhadora do Prêmio Israel de literatura, que estudou em Berlim e chegou a compor uma canção com o nome da cidade. A Orquestra Filarmônica de Israel foi criada em 1936 por músicos judeus que fugiram da Alemanha nazista.



A ferida aberta ainda existente entre a Alemanha e os judeus faz com que muitos israelenses boicotem o país até hoje: eles se recusam a visitar a Alemanha ou a comprar produtos alemães. No entanto, uma nova geração de israelenses está retornando à cidade, apesar da sombra lançada pela história.



Nirit Bialer, 32, que é uma berlinense há cinco anos, se considera uma germanófila. Aos 14 anos de idade, ela começou a aprender alemão no Instituto Goethe em Israel, em uma época em que existiam poucos cursos desse tipo. “As pessoas me perguntavam por que eu estava aprendendo a língua dos nazistas”, conta ela, com um sorriso.



“Atualmente as pessoas lutam por uma vaga em tais cursos”.



Clima de liberação sexual



Duas décadas após a queda do Muro de Berlim, a cidade ainda está em processo de cristalização da sua identidade.



Berlim é um local de aluguéis baratos, de um clima de liberação sexual e de agitação social e política que contribuíram para a criação de um cenário artístico e uma alternativa cultural vibrantes. Como o processo de reunificação ainda não está concluído, a cidade continua até hoje a se redefinir.



“É exatamente isso o que buscam os artistas e os homossexuais”, opina Russ, o radialista. “Em cidades como Londres e Paris, o cenário já está bem consolidado, e todos os espaços encontram-se tomados. Aqui, porém, ainda é possível fazer uma diferença”.



E, tendo vindo de um país que ainda se depara com conflitos militares e geopolíticos, muitos jovens israelenses são atraídos pela vida pacífica oferecida na Berlim moderna. “Quem visita a cidade como turista diz para si mesmo: 'Eu quero morar em um lugar no qual o noticiário tenha início com uma matéria sobre as condições meteorológicas'”.



“O clima aqui é de relaxamento”, diz a artista Keren Cytter, que nasceu no assentamento judeu de Ariel, no território palestino ocupado da Cisjordânia, e que se mudou para Berlim cinco anos atrás. “Isso é normal”.



70% dos israelenses adultos não perdoaram a Alemanha



No seu livro “Israelenses e Berlim”, escrito em 2001, a acadêmica israelense Fania Oz-Salzberger analisou se as relações entre Israel e a Alemanha poderiam algum dia tornarem-se “normais” tendo em vista os acontecimentos do século 21. Uma pesquisa realizada no mês passado pelo Instituto de Geocartografia de Israel revelou que 70% dos judeus israelenses adultos não perdoaram os alemães pelo Holocausto (23% perdoaram, e 7% permanecem indecisos).



“Eu não sei se 'perdoar' é o termo correto”, diz Gil Raveh. Raveh, que é maestro, veio para Berlim quatro anos atrás sob a recomendação do regente israelense consagrado Noam Sheriff, que também estudou na cidade. “Perdoar a quem? Angela Merkel? A garçonete que me serve café?”, questiona Raveh.



“Eu sou capaz de me sentar com os alemães sem ficar pensando que eles fizeram algo de ruim contra mim, pessoalmente”, diz Raveh, diante de uma xícara de cappuccino, em um dos seus cafés favoritos, na área alternativa e repleta de imigrantes no norte do distrito de Neukölln, que é frequentemente apelidado de “Kreuzkölln” devido à sua proximidade do distrito de Kreuzberg. “Por outro lado, perdoar significa que a pessoa não tem mais problemas quanto a uma determinada questão, e eu ainda tenho um problema em relação a isso. No entanto, a minha vida aqui é bem mais simples”.



“No início eu ficava pensando no que toda senhora idosa e educada que eu via havia feito naquela época”, diz a musicista Eleanor Cantor, 35, a principal vocalista das bandas “The Hunters” e “Sister Chain and Brother John”, que mora em Berlim há sete anos.



“Isso não quer dizer que toda vez que saio para comprar carvão eu pense, 'Ah, os judeus foram queimados aqui'. Porém, quando ouço jovens alemães falando em escolher uma escola para os filhos que tenha a menor quantidade possível de 'nicht-Deutsche Anteil' (pessoas de etnia não alemã), eu sinto calafrios”, diz Cantor. “E, obviamente, isso se deve ao passado”.



Parte dois: uma noitada “insana”



Na entrada do clube ZMF, perto da Rosenthaler Platz, no distrito de Mitte, no centro da cidade, um desconhecido alemão saúda o jornalista com um amigável “Shalom”. É uma noite de sábado e da festa gay mensal “Meschugge”, que em iídiche significa “insana”. Bandeiras israelenses estão dependuradas por toda parte no clube, e imagens da ex-primeira-ministra israelense Golda Meir, da cantora israelense Ofra Haza e um desenho de um porco são projetados em uma parede. O DJ Aviv Netter está encarregado da música, e ele toca sucessos populares internacionais e israelenses, desde Blondie e os Pet Shop Boys até o vencedor israelense do Festival da Canção Eurovision, Dana International e o Roni Superstar.



Netter, 26, nasceu e foi criado em um subúrbio de Tel Aviv e mudou-se para Berlim quatro anos atrás. “Obviamente, existem pessoas muito bonitas e inteligentes aqui, e uma deslumbrante vida noturna, e dá para visitar países vizinhos – o indivíduo não se vê preso entre nações hostis”, diz ele. “Mas eu deixei Israel devido ao desespero, e não porque achava legal mudar-me para Berlim”. Netter conta que em 2006 ele participava ativamente do fórum para gays e lésbicas do partido de esquerda Meretz, e estava convencido de que estava prestes a ver a ascensão da esquerda israelense. No entanto, esse sonho desmoronou, deixando Netter desiludido.



Os alemães são cheios de crises de identidade sérias”



Detentor de um passaporte europeu graças à sua mãe, que nasceu na Europa Oriental, Netter mudou-se para Berlim.



Ele conta que passou o seu primeiro ano na cidade imerso em diversões e gastando as suas economias. Depois disso ele criou o Meschugge como um evento único, que acabou transformando-se em uma atração periódica: “A Noite Judaica Não Kosher”, conforme ele chama o festival. Um quarto das pessoas que participa é israelense, e o restante consiste de alemães. Netter diz suspeitar que alguns alemães possam comparecer à festa como uma maneira de aliviar os seus próprios sentimentos de culpa.



“Nós, israelenses, não podemos entender como é não ter orgulho de si próprio, como uma nação”, diz ele. “Os alemães são cheios de crises de identidade sérias”.



Mas os imigrantes israelenses em Berlim têm as suas próprias crises de identidade. Por exemplo, quase todos eles preferem ser tratados como “israelenses em Berlim”, e não como “judeus na Alemanha”. “Até mesmo os próprios alemães dizem que Berlim não é a Alemanha”, diz Russ. “O componente judaico da minha identidade tem a ver com um passado cultural compartilhado, e não com uma crença religiosa. Eu não vou à sinagoga nem como alimentos kosher”.



Bialer, uma moradora de Berlim que atualmente é fluente em alemão, diz que ouvir a língua alemã todos os dias nas ruas e pensar na história da cidade só reforçou a sua identidade israelense. E ela já se deparou com um antissemitismo ostensivo. Bialer conta que já esbarrou algumas vezes com neonazistas e certa vez ouviu um grupo de alemães criticando os judeus.



Bialer relata que se aproximou- deles e disse: “Eu sou judia, neta de sobreviventes do Holocausto. Eu não posso acreditar que vocês falem desta forma na Alemanha de 2009”. Como resposta, um deles olhou para baixo e perguntou: “Quanto tempo nós devemos continuar te sustentando?”. Bialer respondeu: “Me sustentando? Eu tenho um emprego!”.
“O meu sangue ferveu”, diz ela. “Tudo é muito bom, você faz parte da cidade, e aí um alemão lhe diz que você não é nada”.



Humor negro sobre o Holocausto



Muitos israelenses em Berlim usam humor negro, manifestado em piadas sobre o Holocausto, como forma de lidar com o estresse decorrente de viver na terra dos carrascos dos seus avós. Keren Cytter diz que certa vez contou tais piadas ao seu namorado alemão, que a seguir as contou aos seus amigos, que, segundo ela, não entenderam. Uma das piadas é a seguinte: um sobrevivente do Holocausto pega um isqueiro, cheira-o e diz: “Ah, que nostalgia”. Cytter diz que quando seu namorado contou a piada aos seus amigos, nenhum deles riu.



Russ também ouviu a sua parcela de humor negro. “Um amigo israelense em Berlim certa vez me mostrou o seu apartamento”, conta Russ. “Quando entramos na cozinha, ele abriu o forno a gás e disse: 'E este é o chuveiro'. Mas na primeira vez que eu contei uma piada sobre o Holocausto aqui, um amigo me advertiu que isso é ilegal”.



Embora as piadas públicas sobre o Holocausto possam ser ilegais, a extrema-direita tem ganhado força na Europa nos últimos anos, incluindo na Alemanha, onde um debate sobre multiculturalismo abriu novas feridas em meados do ano passado. Alguns israelenses que moram em Berlim dizem que mesmo sendo fluentes na língua, é impossível atingir uma integração total.



A cantora Eleanor Cantor, exibindo longos cabelos negros e uma maquiagem sombria, diz que na Alemanha ela ainda é considerada, na melhor das hipóteses, exótica, e na pior, uma parasita da sociedade afluente. “Até mesmo em Berlim, quando alguém faz algo que é inaceitável para os alemães, estes fazem uma associação imediata entre o comportamento e a origem étnica do indivíduo”, diz Cantor.



Morando na antiga sede do Terceiro Reich, alguns israelenses se perguntam se a história poderia se repetir. “Eu não diria que isso jamais possa acontecer de novo”, diz Netter, o DJ. “O Holocausto nos ensinou que não é preciso que haja monstros para que aquilo aconteça”.



Café expresso e imóveis



Isso não impediu que empresários magnatas israelenses se juntassem ao fluxo de artistas, homossexuais e estudantes que descobriram Berlim. A Aroma, uma famosa rede israelense de bares especializados em café expresso, inaugurou a sua primeira unidade na Alemanha em 2008, no Friedrichstrasse, um distrito comercial e de teatro de Berlim. Magnatas israelenses do setor imobiliário também investiram em unidades habitacionais locais.
“Berlim é uma cidade barata, e cresce rapidamente”, diz Sagi Ginat, diretor da Aroma de Berlim. “O fato de haver muitos israelenses aqui não se constitui na verdade em um fator relevante”.



Yoni Margulies, 32, é consultor para potenciais investidores, incluindo israelenses, em Berlim. Margulies cresceu em Jerusalém, e aos 13 anos de idade mudou-se com a família para Nova York. Seis anos atrás, ele trocou Nova York por Berlim. Margulies diz que se mudou para a capital alemã devido a uma namorada. Ele acabou ficando porque adorou a cidade e a liberdade que ela proporciona.



Margulies é também proprietário do Tape Club, em Berlim, que ocasionalmente faz apresentações da equipe de Tel Aviv que protagoniza a festa dançante gay chamada “PAG”. Ele diz que não tenta usar um “complexo de culpa” no seu negócio ao lidar com os alemães por achar que isso seria um truque sujo.



“Na semana passada, eu fui ao funeral da minha avó, uma sobrevivente de Auschwitz, mas as pessoas com quem eu trabalho aqui não fizeram nada contra a minha família”, explica Margulies. “Talvez por causa dela é que eu deva estar aqui. Afinal de contas, eu estou caminhando, bebendo e ganhando dinheiro no lugar em que Hitler foi queimado”.



(Doron Halutz é repórter do jornal israelense “Haaretz”. Ele atualmente trabalha para o “Spiegel Online” em Berlim como detentor de uma bolsa de estudos Ernst Cramer para os Programas para Jornalistas Internacionais).



Tradução: UOL



Texto do semanário Der Spiegel, republicado no UOL.



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