segunda-feira, 18 de abril de 2022

Um brinde às amizades


Ontem minha melhor amiga morreu e saí para dançar.

A saúde dela, que havia se tornado mais frágil ao longo dos últimos anos, não suportou o oportunismo do vírus da Covid.

Fui na festa de um querido, celebrar a vida que ela me ajudou a apreciar.

Outro amigo, Christian Dunker, lembrava em conferência que, se o amor de transferência forjado numa análise é campo de cura, também os amores de uma vida (conjugal, fraterno, filial) podem sê-lo.

Nos conhecemos na faculdade e ela costumava contar que encasquetou ser minha amiga no primeiro dia de aula. Do alto dos meus nem 20 anos, me interessava pouco pelos alunos mais velhos —ela estava na casa dos 50—, flagrante do que viria a ser chamado de etarismo quatro décadas depois.

Mal sabia eu que nossa amizade seria o pivô da saída de minha existência besta de adolescente. Sua personalidade única se chocou com meus controles obsessivos. Anos ao lado dela equivaleram a décadas de análise.

Quando me encontrava diante de dilemas amorosos e lhe perguntava o que fazer, a resposta era sempre: na dúvida, vai fundo. Sem papas na língua ou vontade de fazer concessões ao desejo do outro, Dinorah já nasceu com a convicção de que nunca se tem tempo a perder.

De adventista criacionista a terapeuta reichiana, foram inúmeras as revoluções que ela fez em sua vida e na de todos à sua volta.

Nunca cedeu ao que se esperava de uma mulher ao envelhecer, fosse para agradar a amigos, marido ou filhos.

Nas horas sombrias da minha vida, conseguia me convencer de que eu sobreviveria. Nas disputas, saía em minha defesa antes mesmo de saber a versão do outro. Maravilhosamente parcial, tendenciosa a meu favor, não saberia definir melhor o sentido de uma amizade.

No trabalho de luto, temos o tempo incomensurável de recolher tudo o que depositamos no objeto amado até reinvestirmos grande parte desse afeto em outras coisas e pessoas. Quando perdemos um amante, paira no ar a possibilidade de encontrarmos um novo amor. Não se trata obviamente de substituição, mas de um papel que poderá ser cumprido por outro. Mas quando se trata de amizade, a questão não se coloca. Relação tão preciosa pela absoluta singularidade, não existe perda de amigo a ser preenchida. Mesmo quando se rompe a relação, paira a impressão de que poderíamos recuperá-la em outra fase da vida, quando o amadurecimento trouxesse seus ganhos.

Dinorah não queria sossego, vivia atrás de uma muvuca com música e agitação aonde quer que fosse. Sonhava com o fim da pandemia e com a eleição que se aproxima para nos tirar da enrascada no qual nos metemos. Apaixonada por política e pelo Brasil, não deixava que falassem mal da nossa terra.

O luto também requer a elaboração da ambivalência, aquela parcela de ódio que existe em todo amor.

A verdadeira mancada da Dinorah foi ter nascido tanto tempo antes de mim e ter me deixado aqui sem ela. Imperdoável, minha querida amiga.

O luto implica na simbolização da perda, da qual fazem parte essas linhas tortas. Assim também faz parte reinvestir cada lembrança através dos gestos que pretendem homenagear o ente perdido.

Dinorah morreu, e eu fui pro samba na casa de amigos, como ela me exortaria a fazer, caso tivesse sido consultada.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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