sábado, 2 de abril de 2022

O velório da terceira via


Fiquei sabendo do falecimento da terceira via às 11h da manhã. Alguns amigos jornalistas insistiam que tal notícia era falsa e que ela ainda respirava por aparelhamento. Outros colegas sociólogos juntavam a sobrevida de um político qualquer com a força iminente de outro político qualquer e garantiam a existência de sinais vitais. Mas, para mim, que não entendo nada disso mesmo, o enterro já era dado como uma balada certa: após longo período de morte encefálica, agora era o corpo que se retirava de cena.

Fui de Uber ao velório, com medo de não achar vaga para estacionar. De fato, estava lotado, mas eram tantos manobristas terceirizados que mais parecia um casamento de celebridade.

Os paparazzi estavam lá, e usavam camisa preta não por respeito à morta. Usavam porque, assim como os publicitários que também estavam lá de camisa preta e os donos de startups que também estavam lá de camisa preta, é a roupa que os define como pessoas que pertencem a um grupo bem específico.

Encontrei na porta alguns amigos do colégio e da faculdade. Gente pela qual tenho carinho, ainda que eu prefira qualquer uma das minhas plantas. Me cumprimentaram com aquela mão certeira e ensaiada, típica da alta performance dos profissionais com metas e agenda bem definidas. A mão durinha que tem alma de brocha.

Contudo, não são pessoas a favor da tortura, de assassinar gay, de tacar fogo em mendigo, de exterminar preto. Olha que coisa boa! É aquele marido de uma conhecida que você não suporta, que é um arrogante desgraçado, um machista nojento, que maltrata garçom e porteiro, que lê técnicas de persuasão de marketing ensinadas por algum escroto com mil processos trabalhistas, mas não quer dizer que ele espanque a esposa porque ela chegou tarde, sabe?

E a sua conhecida, apesar da calça flare e de não registrar a babá dos filhos, não é exatamente a favor de que envenenem indígenas, ela só acha que eles podiam muito bem comprar blazers e parar de ser vagabundos.

Ninguém chorava de se esbugalhar, não foram vistas lágrimas entregues e copiosas. No entanto, tinha sim um bom número de calças de alfaiataria, terninhos de alfaiataria, vestidos transpassados de Jersey e camisas polo que se movimentavam bem tristes pelo local. Formavam vários grupinhos de centro.

Rodinhas de pessoas lideradas por algum jovem que arregalava muito os olhos para dar opiniões —o esforço facial de quem tem dificuldade de se comunicar. São aquelas pessoas com MBA que para sempre vão falar como se fossem promotores de uma festa no Sirena em Maresias. E se expressam tão sofregamente, abusando de gírias e interrupções, que eu sempre tenho o impulso de oferecer uma água. O clássico de quem tem pouca cultura e leitura para opinar, mas aprendeu bem cedo que para ser um CEO, um CFO, um CMO ou um CIO basta você fazer de conta que é.

Luisa, com quem trabalhei em meu primeiro estágio, há mais de vinte anos, olhava o caixão com o semblante e a coluna forçosamente eretos, típico de quem faz RPG e terapia cognitiva. Eu não acredito em nenhuma das duas coisas e sempre achei Luisa péssima e desinteressante. Mas é má pessoa?

Andrea não é a favor de que adolescentes periféricas grávidas morram tentando abortar. Ela só não é a favor da descriminalização do aborto. Tem uma diferença aí, né? Eu não acho, mas Luisa e os amigos da defunta, sim. Não dá para chamar Andrea de fascista, odiar Andrea. Mas eu odeio.

Me aproximei do caixão e tive que me controlar para não cometer a nova moda da selfie de mau gosto que é você no primeiro plano e o falecido atrás. Deu vontade. Quis meter um Caetano Veloso numa caixa de som. Dançar sobre os escombros. Foi a festa da retomada.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário