quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Último '007' não aplaca os machismos dos filmes anteriores da série


Antes da estreia de “Sem Tempo para Morrer”, a atriz francesa Léa Seydoux se defendeu dos possíveis ataques feministas a sua participação no filme.

“A gente se esquece que James Bond também é um objeto sexual”, disse ela a uma revista britânica. “As mulheres adoram ver ele, não acha? Eu adoro ver homens em roupa de banho.”

Fico pensando se é tão simples assim. Num filme anterior da série, Daniel Craig surgia das águas do mar com o calção todo molhadinho. Sem dúvida, é um homem atraente.

Mas como aquela cena imitava a célebre aparição de Ursula Andress de biquíni, num filme de 50 anos atrás, o que está em jogo é menos a sexualização de James Bond do que uma ironia face a seus machismos em outra encarnação.

Quando Ursula Andress ou outra beldade apareciam, era a própria câmera, para não falar da montagem e da música, quem ficava babando. Coisa semelhante aconteceu em “007 Contra Spectre”, quando a mesma Léa Seydoux deslizava pela cabine de um trem usando um vestido que parecia ter licença para matar.

“Sem Tempo para Morrer” mostra o invejável torso ensaboado de Daniel Craig debaixo do chuveiro. Mas a câmera não se estatela diante do que vê. Passa rapidinho; menos do que alimentar as carências sexuais dos espectadores ou espectadoras, a cena funciona como uma citação, um malicioso antídoto para eventuais críticas feministas.

A brincadeira continua, quando vemos o famoso agente secreto encarregado de preparar uma papinha de bebê. Ou quando fica sabendo que seu próprio codinome de 007 agora pertence a uma nova espiã, interpretada por Lashana Lynch. E, em matéria de objeto sexual, a atriz Ana de Armas não foge ao padrão de outras “Bond girls”. Mas também aqui a tática é ironizar os antigos sucessos de Bond.

Em mais de uma ocasião, Daniel Craig pensa estar sendo convidado para fazer sexo, só que não. As mulheres de “Sem Tempo para Morrer” têm coisas mais interessantes para fazer do que se jogar nos
braços de um homem de idade.

Naturalmente, Léa Seydoux tem razão ao sugerir que, para que exista um objeto sexual, é preciso que exista um sujeito também. De modo que, se uma mulher acha irresistível o tórax ou o bumbum de um homem, a objetificação sexual pode acontecer do mesmo modo, só que com gênero trocado.

O problema, contudo, não está aí —não depende do que uma espectadora ou espectador acharem desta ou daquela estrela de cinema. Depende do que o próprio filme quer fazer em termos de manipulação. A ironia dos produtos mais recentes da série acaba funcionando apenas como um reconhecimento “elegante” da manipulação anterior —mas não faz muita diferença.

No geral, repetem-se as correrias com carros derrapando, as explosões de navios, submarinos, helicópteros ou mansões, os gênios querendo dominar o mundo, os smokings que não amassam nunca, as estradas cheias de curvas sobre paisagens excepcionais.

Nunca fui fã dessa franquia, mas gostei de “Operação Skyfall” e tinha expectativas altas com “Sem Tempo para Morrer”. Saí no meio. Às vezes é questão de dia. Senti, em todo caso, que faltou fazer com os carros e pistolas a mesma operação ideológica que se intentou no caso das “Bond girls”. O carrão que passeia pelas escarpas da Itália poderia ser tão ironizado quanto os poderes supostamente infalíveis de Bond junto às mulheres. Ou será que estou perdendo alguma coisa? Já em declínio, nosso herói vegeta numa praia tropical, pilotando apenas um quatro por quatro cujo motor falha na hora H. Termina aceitando uma carona de lambreta. Ironia, aqui também.

Mas seria impossível “desconstruir” o mito do começo ao fim. E, afinal, tudo já era uma simpática palhaçada quando Sean Connery tirava sua roupa de mergulhador para mostrar o impecável “summer jacket” que usava por baixo.

A diferença era, como sempre, entre a quase nudez feminina e o charme invencível do homem “perfeitamente alinhado”. É a diferença que faz a mulher ser vista como “objeto”, ao passo que o homem, bem... É sobretudo “sexy”. Daniel Craig, como Sean Connery, é tão notável neste quesito quanto Léa Seydoux e Ursula Andress no outro.

Machismo e feminismo à parte, são todos “objetos de consumo”. Nessa lógica, também o carro, o relógio, a bebida se sexualizam para o espectador —a quem cabe chamar, naturalmente, pelo verdadeiro nome: sujeito de consumo.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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