sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A miniadega e o mestrado


Em algum momento deste ano em que enlouqueci completamente (e muito mais do que já venho pirando nas últimas quatro décadas), eu pensei que em minha casa e em minha vida faltavam duas coisas: uma miniadega e um mestrado.

A respeito do meu comportamento instável durante a pandemia, tenho três declarações a fazer. A primeira é que comprei uma flauta. A segunda é que me apaixonei por um escritor francês gay de 24 anos e passei meses escrevendo "je t’aime" em todas as suas redes sociais. A terceira é que gastei o valor de um Corsa no site da Kalunga porque tentei virar uma espécie de artista plástica que não se leva a sério e só trabalha com material escolar.

Eu não bebo vinho, meu marido não bebe vinho, minha filha de 3 anos não bebe vinho e ficamos por quase dois anos sem receber amigos que bebem vinho. No entanto, eu sou insegura e sou distímica e sou compulsiva por adquirir (objetos, empregos, títulos, doenças) e vivo de, no sentido profissional da palavra, expor artisticamente (sic) minha deselegância, ignorância e futilidade e também de disfarçar copiosamente as mesmas três características. E, por todas essas razões e suas contradições, eu achei que a hora tinha chegado e que não dava mais para fazer de conta que tudo bem não ter uma miniadega e, porque isso é uma consequência natural e óbvia da miniadega, não dava mais para não ostentar um mestrado.

Pedro, que me chama de Tatiane e se diverte em me fotografar sentada na privada para depois fazer figurinhas com frases como "você não me leva a sério", me convenceu a trocar a ideia da miniadega por uma lava-louças. Quanto ao mestrado, apesar de ele ter entrado em meu escritório 80 vezes por mês para repetir a pergunta "você não está entendendo nada, está?", eu insisti dia após dia por pelo menos uns 20 meses até que ontem, no banho, eu me peguei respondendo sozinha: "Não! Não, eu não estou entendendo NADA".

Aqui é o momento em que eu te conto algo muito doloroso que aprendi fazendo um mestrado na USP (e era como aluna especial, nem era pra valer): você só se torna um acadêmico se você já for um acadêmico há pelo menos 20 anos.

E tem mais verdades que eu preciso me ouvir falando em voz alta: mesmo você sabendo o que querem dizer as palavras "neoliberalismo", "contingência" e "epistemologia", elas serão usadas de tantas formas complexas e múltiplas e histéricas que você esquecerá seu próprio nome.

Ah, mais um ponto importante: não interessa o quanto você estude o significado do que é hegeliano e do que é kantiano nem o que é o sujeito barrado do Lacan, na primeira vez que você levantar da cadeira, todo o sentido precisará ser revisado.

Parece piada, e eu custei a aceitar, mas não é porque você parou de ser atendida em hospital na Penha e de certa forma deu uma vencidinha marota na vida (e se emociona na sala de espera do check-up no Fleury) que vai conseguir comprar o seu status intelectual como se compra botas em butiques autorais. Eu precisaria abrir mão de todos os meus empregos e de tudo o que eu sou e de tudo o que eu fui todos esses anos para de fato ser alguém que entende alguma porra do que aquelas pessoas que fazem isso há 20, 30, 40 anos estavam falando.

Me apaixonei por uma infinidade gigantesca de homens feios e com menos dinheiro do que eu e quis sugar seus cérebros e quando Lacan diz que eu sou uma pessoa escrita pelas palavras ou assujeitada por elas ou "dita antes de me dizer" ou sei lá que cazzo ele quer de mim… eu juro que me comovo. E hoje eu queria poder nascer de novo e fazer tudo diferente e estar na USP há 20 anos e lançar um "isso é hegeliano demais" quando eu escolhesse um pão de queijo num café. Mas ontem eu me desmatriculei do meu mestrado e estou arrasada e livre.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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