sexta-feira, 1 de outubro de 2021

O Brasil precisa parar


Bem no começo da pandemia do novo coronavírus, em março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro lançou a campanha “O Brasil não pode parar”. E mesmo aqueles que o odeiam, execram e abominam (falo de mim na esperança de ter você ao meu lado) o obedeceram. Nós não paramos.

Na última terça, depois de ver o depoimento da advogada Bruna Morato na CPI da Covid, eu precisei demasiadamente descontinuar o que quer que fosse. Eu me senti tão paralisada e atordoada. Mesmo assim fiz uma omelete, corri 35 minutos na esteira, liguei o aparelho que faz efeito de “noite estrelada” no teto do quarto da minha filha, li algumas páginas do livro “Caro Michele”, de Natalia Ginzburg, e adormeci no meio do angustiante terceiro episódio da nova versão da série “Cenas de um Casamento”, na HBO Max.

E fiz tudo isso depois de descobrir que os idosos que buscaram cuidados nos hospitais da rede Prevent Senior não só foram testados como cobaias mas também alguns faleceram asfixiados, sob ordens de “diminuam o oxigênio!” porque “óbito é alta!”. O presidente deste país, eleito democraticamente por pessoas do nosso convívio, trabalhou como mandante, protetor e assessor de imprensa para uma UTI do inferno, cujo lema é a rotatividade de corpos descartáveis.

Reguei plantas, agendei reuniões, orcei tapetes. E fiz tudo isso depois de lembrar que quase contratei um plano da Prevent Senior para meus pais. Mas, no exato mês em que eu ia assinar os documentos, melhorei minha renda e decidi por outra operadora. Como eu estaria me sentindo agora? Como pode um projeto ser tão macabro que planeja adicionar camadas ao luto? Não basta perder os pais, ainda é preciso perdê-los porque os levamos (e pagamos!) para serem assassinados?

Importante insistir aqui: eu lembrei que a nutricionista recomendou que eu comesse omelete antes de fazer qualquer exercício físico. E lembrei disso mesmo sabendo que tem um hospital Sancta Maggiore não muito longe de casa. O horror não fica mais nos livros de história, fica a 9 minutos de Uber. E então, ao correr na esteira ouvindo o quarto podcast do dia —porque eu não posso parar e o Brasil não pode parar—, expressões e frases que um dia decorei para a redação do vestibular começaram a pipocar no horizonte. Plano de extermínio. Extermínio sistemático. Indústria da morte. Um pacto do governo com empresas. Em nome do lucro, empresas colaboraram com o Reich. A luta para preservar a memória.

Na quarta, depois de ver a imagem de pessoas famintas em busca de pelancas e ossos distribuídos na zona sul do Rio, e sentir os olhos encherem de água e a pressão cair até meus pés, novamente desejei parar. Eu estava abismada, estarrecida, petrificada. Mas não pude. Escrevi o roteiro de um podcast, orcei escolas de natação infantis e hidratei os cabelos.

O Brasil devia ter parado quando pacientes morreram asfixiados por falta de balões de oxigênio em Manaus. Quando as mortes de indígenas por Covid não foram divulgadas pelo governo. Quando a Paulista lotou de imbecis pedindo a volta do cala a boca, da porradaria, do assassinato de estudantes. Quando monstros que rifam a própria mãe usam plaquinhas de “liberdade de expressão”.

Estamos perplexos, terrificados, atônitos. Sem saber se amanhã haverá comida ou água ou luz ou oxigênio (boa parte do país já parou, essa que é a verdade). Mas nem a escuridão da nuvem de fim de mundo nos deteve. Aqui vai essa coluna. Comprei tops para pilates. Aprendi a fazer musse. Toda a nossa ânsia e indignação não serviu para deixarmos de ser a engrenagem de um plano diabólico.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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