sexta-feira, 23 de julho de 2021

A África de Laurentino Gomes é um continente pujante e sem pieguismo


Devoro o volume um do “Escravidão”, de Laurentino Gomes.

No Brasil, o tráfico de humanos nos deixou de legado tanto a cultura e o conhecimento africanos quanto o progresso movido à chibata, à miséria, ao racismo e uma dívida social impossível de ser quitada.

Ignoro muitos aspectos da África que nos fundou e creio não ser um caso isolado. Inúmeros fatores contribuíram para o alheamento, inclusive decisões equivocadas de brasileiros doutos.

Em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, mandou incinerar os arquivos dessa “instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade e infeccionou-lhe a atmosfera moral”.

A limpa destruiu os registros da origem ancestral de milhões de brasileiros.

A escravidão é um assunto espinhoso para uma descendente de portugueses transmontanos e italianos sardos como eu. Atraídos pela propaganda governamental, que prometia enriquecimento rápido numa terra onde o ouro brotava do chão, meus antepassados cruzaram o Atlântico no fim do século 19.

A campanha escondia o projeto de embranquecimento do país, por meio da substituição da mão de obra afrodescendente, recém-liberta pela abolição, por europeus pobres.

A minha existência, portanto, é resultado de uma política de viés racista. Livres do preconceito de cor, grande parte dos netos e bisnetos da imigração europeia conseguiram, em três ou quatro gerações, se transformar em doutores, intelectuais e até presidentes; destino raro entre os herdeiros dos africanos imigrados à força.

Na escola, aprendi que os portugueses aportaram no Brasil por acaso e que os povos indígenas, por preguiça inerente à raça, não se prestavam ao trabalho duro dos engenhos de açúcar. Para solucionar o problema, abomináveis comerciantes de escravos traficaram uma massa passiva de trabalhadores braçais, capturados na África primitiva.

Conheço as críticas feitas a Gilberto Freyre por sua visão ambígua, muitas vezes adocicada, do período escravocrata. Freyre teria ajudado a perpetuar a falácia da democracia racial brasileira.

Confesso, no entanto, que devo a “Casa-Grande e Senzala” a descoberta da potência, da ciência, da alegria e do vigor fundador da cultura africana no Brasil. O livro sepultou o aspecto débil e fantasmagórico dos escravizados a mim transmitido em sala de aula.

No que se refere ao caráter inocente e infantil dos povos originais das Américas, Claude Lévi-Strauss teve o mesmo efeito de Freyre na minha formação. “Tristes Trópicos”, “O Pensamento Selvagem”, “As Estruturas Elementares do Parentesco”, “Mitológicas” e “A Oleira Ciumenta” me revelaram a complexidade dos ameríndios, aposentando a versão pueril pregada na escola.

Tardiamente, enxergo a África pelos olhos de Laurentino Gomes. Eu, que mal nomeio ou localizo os países de um continente que nos pariu, identifico agora na sua costa oeste, entre o Atlântico, o Saara e as florestas equatoriais, o curso dos rios Gâmbia, Senegal e Níger, onde floresceram os impérios de Gana, Mali e Songai.

E compreendo a relação dessa região com o lucrativo tráfico de escravos, motor econômico das descobertas marítimas desde antes da chegada dos ibéricos ao Novo Mundo.

Gomes descreve as duas engrenagens circulares de ventos e correntes do Atlântico, uma girando no sentido anti-horário, na parte de baixo do equador, e outra a favor do relógio, no hemisfério norte.
O domínio dos dois sistemas permitiu aos portugueses tanto contornar o cabo da Boa Esperança quanto inaugurar uma rota triangular de comércio entre a Europa, a África e o Brasil, sustentada pela carga dos navios negreiros.

A África de Laurentino Gomes é sólida, realista e pujante. Sem pieguismo, o autor insere o continente africano na história oficial da Europa, do mundo árabe, do Oriente e das Américas e, ao fazê-lo, a modifica.

Promulgadas em 2003 e 2008, as leis 10.639 e 11.645 exigem a inclusão da história das culturas afro-brasileira, africana e indígena no currículo do Ministério da Educação.

Percebo, pelo meu filho mais novo, o empenho das instituições de ensino em cumprir com a obrigação, embora note, na abordagem do tema, certa afetação folclórica, um exotismo raso que tanto a clareza de Gomes quanto a ciência de Lévi-Strauss ajudariam a evitar.

Se o objetivo é educar crianças avessas ao racismo e dotadas de compreensão ampla da diversidade humana, Gomes, Lévi-Strauss e até Freyre, mesmo que com ressalvas, deveriam constar do currículo do MEC, junto à pré-história do território brasileiro contada por Niède Guidon. “Conhecereis a verdade”, molecada, “e a verdade vos libertará”.


Texto de Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

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