quarta-feira, 23 de junho de 2021

Desde que virei pai, só me interessa que a morte aconteça depois da vida


Morrer sempre me pareceu uma ideia razoável, quando não muito gostosa. Quando tomei um ácido pela primeira vez pensei que estivesse morrendo, e foi a melhor coisa que já senti. Se morrer for assim, pensei, quero morrer todo dia, muito. Vivia pensando em morrer, e isso me fazia viver melhor.

Gostava de viver, mas também gostava de ideia de acabar a vida no auge da felicidade, como num filme musical. Ou no auge do problema, como numa sessão de análise lacaniana. E ainda tinha a possibilidade de vida após a morte. Nunca acreditei muito na hipótese, mas gostava de pensar que talvez ganhasse essa surpresa pós-créditos, como num filme da Marvel.

Nunca senti medo de avião, porque parecia uma morte rápida, sem cadáver, indolor. Gostava de pegar estrada à noite porque a morte estava sempre a um cochilo de distância. Adorava lembrar que o mundo continuaria sem mim, igualzinho, ou melhor: com um pouco menos de emissão de carbono. Não entendia quem tentava prolongar a vida ao máximo, como um prisioneiro que luta pra continuar encarcerado. Que gente apegada, pensava. Desapega.

Até que eu tive uma filha. E tudo mudou. Já não consigo entrar num avião sem suar frio. Não chego perto de drogas que me façam pensar que estou morrendo. Não pego estrada à noite nem se estiverem vacinando na serra de madrugada. Quer dizer, a não ser que estejam vacinando na serra de madrugada. Só porque morro de medo de morrer de Covid.

Desde que virei pai, parei de sonhar com o cadafalso. Perdeu a graça pensar na morte. Não me interessa nem mesmo pensar em vida após a morte.

Só me interessa que a morte aconteça depois da vida. O que mais mudou na minha vida foi que ela já não pode terminar tão cedo. Existe uma espécie de contrato: pelas próximas décadas, não posso me demitir.

Parece desesperador. Adorava não ter medo da morte. Mas não há nada melhor do que precisar estar aqui, agora. Mais que isso: precisar gostar de estar aqui, agora. Mesmo que haja algo depois disso aqui.

Não importa: é aqui que minha filha está. Não existe nada antes, nem depois —nem acima nem abaixo. A única coisa que importa está bem na minha frente. Nunca estive tão apegado. Daqui não saio, daqui ninguém me tira.


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

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