quinta-feira, 6 de maio de 2021

O cagaço e o cagaço do general

 

“Pazuello faltará a CPI por testar positivo para cagaço”, proclamou o Sensacionalista. Vi muita graça nisso, uma reação que, infelizmente, vem se tornando cada vez mais rara neste tempo lúgubre que o país atravessa.

Parte do humor está, claro, no contraste entre um general encagaçado e as ideias antigas de bravura associadas aos militares —já estropiadas a esta altura, é verdade, por tantas demonstrações de servilismo de altos oficiais a um capitão tresloucado que um dia o Exército excretou.

O maior mérito cômico da frase é da palavra cagaço, uma escolha vocabular feliz. Se Pazuello tivesse testado positivo para medo ou covardia, sinônimos de salão, a piada perderia a maior parte do efeito.

Cagaço é um tabuísmo ou palavrão —dos mais domesticados, próximo da linguagem infantil— de boas credenciais vernaculares. Sua certidão de nascimento foi lavrada em 1873 num cartório luso, o “Grande Diccionario Portuguez” de Domingos Vieira, e sua família tem raízes que se perdem na bruma dos tempos.

Cagar, verbo que dispensa definição, é algo que se faz em português desde o século 13, mas começamos tarde. Em latim, “cacare” era ato corriqueiro, mais cotidiano que o dia-sim-dia-não proposto por outro que parece encagaçado diante da CPI.

Como tantos fatos da vida, aquilo era algo que os romanos tinham aprendido com os gregos. A caca dos filhos de Zeus se chamava “kakke”, no que pouco se afastava da raiz indo-europeia “kakka-” —e aí chegamos à pré-história da matéria, ao tolete em estado fóssil.

O indo-europeu (ou protoindo-europeu) é uma língua imemorial que os linguistas do século 19 criaram de trás para a frente, isto é, construíram como hipótese a partir de semelhanças de difícil explicação entre línguas dispersas pelo mundo —no caso, do irlandês “caccaim” ao armênio “k’akor”.

Faz sentido que essa conversa mergulhe num sopão pré-histórico. Comer e descomer, além de se reproduzir, são os atos mais básicos não apenas dos humanos, mas de todos os organismos vivos. O resultado, batendo no ventilador da história, só podia ir longe.

Se a associação entre a evacuação intestinal e o medo, o pavor, reside numa evidente parelha (fisio)lógica de efeito e causa, a sonoridade gozada da palavra —que muitos supõem ter origem numa onomatopeia, numa imitação de som natural— não deve ser subestimada.

Cagão, cagarolas e caguincha são alguns dos mais expressivos sinônimos de medroso entre as dúzias que o Houaiss lista, do maricas favorecido pelo presidente ao timorato dos eruditos, passando pelos populares frouxo e banana e pelos clássicos poltrão e mofino.

Nem preciso dizer que a longa história da caca e seus bons serviços prestados à linguagem foram insuficientes para tornar essas palavras aceitáveis no discurso educado.

Por mais que uma frase como “ele gosta de cagar regras” seja corriqueira a ponto de dispensar sobrancelhas arqueadas na maioria dos ambientes sociais, recomenda-se enfaticamente não empregá-la numa redação do Enem ou numa entrevista com o arcebispo.

Refletindo sobre essas escatologias linguísticas, me ocorre uma curiosidade de rádio-relógio: que o pirilampo foi caga-lume em português por cerca de dois séculos, antes de tomar um banho de bons modos e virar vaga-lume.

Ao poético inseto luminoso eu acho que a mudança caiu bem. Mas não teria graça nenhuma se um dia a falta de brio e coragem ficasse conhecida como vagaço.


Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo

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