sexta-feira, 21 de maio de 2021

Multidões dentro de mim

 

Walt Whitman, o grande poeta da Revolução Americana, de acordo com o nosso Paulo Leminski, num poema chamado "Song of Myself 51" afirma "I am large, I contain multitudes", ou, em tradução livre, "Sou grande, contenho multidões".

Essa frase foi usada em "Fundamentals", livro recente do físico Frank Wilczek, para mostrar como o espaço é infinito não só fora de nós, mas dentro do cérebro humano, por conter percepções do mundo e lembranças que se acumulam e dialogam entre si.

Ao relembrar da frase do poema, na acepção que Wilczek lhe atribui, recordei certo pensamento mágico que me vem aparecendo nos últimos tempos: os meus que já se foram vivem dentro de mim e posso dar-lhes, em alternância, expressão.

Assim, acordo às 5h30 sendo meu pai, comovo-me com uma cena bonita nas minhas caminhadas como minha avó materna, assumo tarefas domésticas apesar de ter intenso trabalho profissional, como minha mãe. E, a cada lembrança dessas, falo com eles, conto-lhes o que estamos vivendo com a pandemia e volta-me, como sempre, a frase de minha mãe: "Conte suas bênçãos", dita sempre em inglês, não sei por que motivo. Era sua forma de nos mostrar que, mesmo na dor, precisávamos ter consciência de que éramos privilegiados e que outros sofriam mais do que nós.

Mas há mais gente dentro de mim, como a história de sofrimentos e dramas mal resolvidos que minha família me traz, na forma de parentes que frequentavam as narrativas de meus tios e avós, que perambularam por diferentes países na busca de um lugar seguro, num mundo não só em guerras constantes mas com perseguições e retirada de direitos do grupo étnico-religioso a que pertenciam, os judeus.

Lá dentro de mim se encontram o Vilmos Billitz, que salvou não só sua família mas um grupo grande de prisioneiros em Bergen-Belsen e foi posteriormente, ao que tudo indica, assassinado, entre vários outros antepassados, com suas visões de mundo, nomadismos e estigmas que os acompanhavam, na Hungria, na Romênia, em Portugal ou na Turquia.

E é sobre estes dois últimos pontos, o nomadismo e o estigma, que se detém o livro recém-lançado pelo jornalista Rubens Glasberg, "Os Indesejados", retratando a saga de sua família nos terríveis anos do nazismo. Ao lê-lo defrontei-me novamente com meus personagens interiores, que viveram as mesmas decisões difíceis e o mesmo sofrimento e receberam as mesmas ajudas.

O depoimento da mãe de Rubens, austríaca de nascimento, fez-me lembrar de frases inteiras que minha mãe disse ao, finalmente, depois de anos sem compartilhar sua condição, decidir nos contar sua fuga e nos dizer quem éramos.


Texto de Claudia Costin, na Folha de São Paulo

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