sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Uma vida sabática

Achei estranho quando me falaram: “Xiiiii, não vai sair nada daí”. Perguntei se a mulher não tinha grana pra bancar o projeto e responderam: “Não, o problema é justamente o contrário”. Foi em maio do ano passado, e pelo Zoom, a nossa primeira reunião. Deu pra ver que ela tinha mais livros amarelados e plantas exóticas do que vasos e bolas de murano, e respirei aliviada. Se era rica, não fazia o tipo perua sem personalidade. Usava uma roupa meio guerreira asteca com pinta de caríssima e um brinco azul-claro gigante com pinta de baratinho. Fiquei fascinada por sua figura única e topei a empreitada.

Combinamos o próximo encontro para a semana seguinte, mas ela não podia cedo: “De manhã eu descanso porque não tá fácil, né?”. Intrigada, perguntei: “Você tem filhos? Tá sofrendo aí sem funcionários pra te ajudar com a casa? Tá cheia de trabalho? Mestrado?”. Ela respondeu “não” a tudo, e ficamos sem assunto.

Na quinta à tarde, quando faríamos a tal reunião, ela desapareceu. Horas depois, mandou uma mensagem avisando que tinha ido velejar porque precisava “esfriar a cabeça”. Daí veio junho e julho, e nada da mulher. Em seu Instagram, descobri que ela passou um mês relaxando numa fazenda da família “pra aguentar esse ano” e, na sequência, 15 dias desestressando em uma casa que a família construiu perto da praia do Espelho, na Bahia: “Um tempo pra mim”. Na volta, ela tirou uns dias pra descansar em Paraty, em uma das propriedades da família: “Me reconectando com minha infância”. E então, após essas férias, ela acabou de saco cheio de “tanta mala pra fazer e desfazer” e precisou sumir “pra valer”.

Só que ela já tinha depositado metade do valor do trabalho na minha conta, e comecei a ficar incomodada. Primeiro porque detesto dever qualquer quantia pra qualquer pessoa, segundo porque se tem uma coisa de que eu gosto mais do que de dinheiro é de trabalhar pra merecê-lo (ou pura e simplesmente de trabalhar).

Tentei ligar, mandar email, mensagem, falar com o sócio da mulher. “E aí, vai rolar ou não?”. Até que em novembro a extenuada jovem senhora de 34 anos, sem filhos e sem trabalhar havia muitos meses (ou anos?), apareceu se dizendo renovada e cheia de gás. Marcamos uma videochamada na qual discutimos as mesmas coisas já ditas e anotadas seis meses antes e combinamos outra reunião para a semana seguinte. Ela disse que tinha que ser depois do almoço, porque de manhã preferia ouvir música e meditar (eu sei que ela dorme de babar até 3 da tarde), mas antes do pôr do sol, porque “segundo a medicina ayurvédica, é preciso não pensar em mais nada assim que escurece”. Eu ia falar um palavrão, porém estava tão corrida e sem agenda que mandei apenas um “ok”.

No dia do encontro, quando eu apresentaria alguns caminhos e pararia de me contorcer com a ideia de ter recebido um pagamento à toa, ela desapareceu não apenas do WhatsApp e do email, como também se desconectou do Instagram e do Facebook. Seu sócio disse que não tinha certeza, mas parecia que a nossa super-heroína contra a fadiga tinha viajado, meio urgente, pra uma casa que a família tem no litoral norte, porque “o caos de São Paulo fazia muito mal para sua criatividade”. Devolvi o dinheiro (que não dava nem pra pagar o armário que estou fazendo para o lavabo —mas o que é certo é certo) e resolvi não pensar mais nisso.

Então ontem, nossa gladiadora urbana contra o esgotamento, reapareceu e postou que “estava com bloqueio criativo depois de semanas isolada para ser criativa e tiraria uns dias para recuperar sua criatividade”. E ela escreveu assim mesmo, não sendo criativa nem pra pensar sinônimos. Daí, claro, meteu uns “odoyá oxalá cachoeira”, porque é o que eles sempre fazem, ainda que não façam nada. Eu dei like.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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