terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Lancellotti, Varella, Suplicy e outros

 Minha filha me pergunta qual é o nome do terceiro “velhinho superpoderoso”? Antes que eu entenda sobre o que está falando, ela responde: Lembrei: Drauzio Varella! Percebendo minha expressão de ignorância, me informa que o padre Julio Lancellotti e o vereador Eduardo Suplicy (PT) completam o trio, óbvio!

Mesmo com tantos expoentes em sua própria geração lutando diuturnamente contra injustiças e perdas de direitos, têm chamado atenção dos jovens os ídolos septuagenários, octogenários, nonagenários... Vale lembrar que a idade dos três “superpoderosos” varia entre 72 e 79 anos e que os jovens com quem minha filha compartilha a brincadeira carinhosa nasceram nos anos 2000. Devemos incluir nessa trupe de “influencers 70+” Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Laerte, Fernanda Montenegro e uma lista imensa de personalidades admiradas por uma legião de fãs recém-saídos —ou ainda dentro— da adolescência.

Em tempos especialmente sombrios fica difícil transmitir algum alento para uma molecada que tem retrocessos sociais, obscurantismo e violência como herança. Como explicar que lhes deixamos um presidente execrável, cuja principal prioridade —acima das 32 recém-declaradas!— é melar o jogo democrático que o elegeu? Como encarar que passados 60 anos da revolução de costumes as pautas conservadoras estejam na ordem do dia?

Mas o que têm em comum esses velhos exemplares? Todos são testemunhas ativas de seu tempo e estão impregnados de duras experiências que os transformaram em pessoas melhores. Engana-se quem prega que o sofrimento engrandece por si só, no máximo ele nos embrutece e dessensibiliza. Para que algo de bom advenha da vivência dolorosa o sujeito precisa reconhecer, elaborar e escolher um destino para o seu pesar. Em “The Year of Magical Thinking” (2005) e “Blue Nights” (2011) vemos Joan Didion, 86, transformar em literatura a perda irreparável do marido e da filha, respectivamente, nos sensibilizando e engrandecendo. Podemos apreciá-la no documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold” (Netflix, 2017).

É no laço social, junto aos demais, que podemos fazer o melhor com o que de pior nos acontece. Tornar-se generoso e solidário diante da dureza da vida é uma das poucas situações em que deveríamos aplicar a palavra mérito.

Além disso, esses ídolos são todos exemplos de que há vida criativa, profissional, política, amorosa e sexual na velhice, dando um bom norte para quem está entrando na idade adulta. Insisto nos termos “velho” e “velhice” pois entendo que é sua conotação negativa que deve ser repensada e não os termos. Pode me chamar de velha, o problema é o adjetivo que segue o nome. Jane Fonda, aos 83 anos, calçando botas de verniz preto até o joelho com salto agulha ou sendo presa durante protesto, é o tipo da velha porreta que me inspira. O que a nova geração talvez não se dê conta é que são as inquietações e provocações deles que nos mantém despertos.

Tempos difíceis se sucedem —o mundo nunca foi um parquinho—, mas devem ser entremeados de realizações e alegrias. Testemunhamos isso no espaço público com o luto encenado no Beco do Batman, área na Vila Madalena internacionalmente conhecida por seus grafites. Quando Nego Vila foi brutalmente assassinato por um policial militar ao apartar uma briga na região, o Beco foi recoberto de tinta preta e palavras de ordem em sinal de luto e revolta. Nesta semana, a cicatriz sinuosa recomeça a ser colorida, para nos lembrar que perdemos muito, mas a vida segue.

Oxalá por muitas e muitas décadas.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário