terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Quem é você na fila do pão?

 Toda fila coloca a questão de seu critério de ordenação. É por ordem de chegada, de altura ou de influência? A expressão “quem é você na fila do pão?” fala disso e faz par com o emblemático “você sabe com quem está falando?”. Ambas se baseiam no uso do poder para determinar quem vale mais, quem merece mais.

Em palestra recente, uma jovem da plateia me dizia que a babá de seu filho havia deixado o próprio filho em sua terra natal. A jovem acreditava que, como esse era um hábito comum no Nordeste, a babá não sofreria com essa ausência, pois já estava acostumada.

A ideia aqui é de que algumas pessoas estariam tão acostumadas com privações, que nem as sentiriam mais. Portanto, nós, os patrões, podemos dormir sossegados, sem nos identificarmos com o sofrimento de subalternos, supostamente acostumados a viver longe dos seus. Trata-se de uma racionalização usada corriqueiramente para não entrarmos em contato com as violências sociais e individuais que impingimos uns aos outros.

Embora cada um viva suas experiências de forma única e intransferível, está em jogo aqui a conveniente hipótese de que uma classe de sujeitos sofreria menos do que outra. De fato, ocorre justamente o contrário: é por sofrer demais, por tempo demais e sozinho, que o sujeito desiste de se lamentar, o que não diminui sua dor, mas sua esperança em expressá-la.

Faltou assistir “Que Horas Ela Volta?” de Anna Muylaert (2015).

A lógica tão danosa que rege nossas relações sociais é simples: pimenta nos olhos dos outros é colírio. No caso citado são duas violências: as condições de vulnerabilidade social —a funcionária não pode se dar ao luxo de ficar sem esse trabalho— e, cereja do bolo, a falta de reconhecimento da injustiça e do sofrimento decorrentes dessas condições.

Desçamos mais um degrau.

Em “Acontecimento” (Zahar, 2017), Slavoj Zizek relata uma cena presenciada por Jorge Semprún em um campo de concentração nazista —mas poderia ser durante a escravização de indígenas e de africanos. Para encurtar o longo show de horrores que ele descreve, me limito a dizer que durante uma caçada a duas crianças, a menor ficou para trás. A criança maior, num gesto surpreendente, voltou para lhe dar a mão. Morreram as duas de mãos dadas. As mãos dadas na derradeira hora revelam o único traço da cena que merece o título de humano: a solidariedade. Não se trata de amor ao igual, ao familiar, ao narcisicamente investido, mas ao outro qualquer.

Em seu mais recente livro, “Maneiras de Transformar Mundos” (Autêntica, 2020), Vladimir Safatle expõe de forma contundente o gargalo das lutas contra a desigualdade social. Defender mulheres, negros, homossexuais e pobres não pode ser um fim em si mesmo, visto que corremos o risco de apenas trocar posições, mantendo o jogo de poder intacto. Como ele afirma: “Matar senhores nunca foi a ação mais difícil. Mais difícil sempre foi se recusar a ocupar seus lugares, recusar a agir como até agora se agiu”. O livro aponta a poderosa contribuição da psicanálise na discussão política atual e se revela um dos mais acabados testemunhos do fim de uma análise —no caso, do autor.

Furar a fila da vacinação é expor um desconhecido mais vulnerável à morte em nome de um direito autoproclamado.

Para a pergunta “você sabe com quem está falando?”, a única resposta decente seria:“não sei, tampouco você o sabe, mas uma coisa é certa: ambos sofremos, ainda que em condições distintas”.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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