terça-feira, 12 de janeiro de 2021

A humanização do embrião encobre a desumanização dos corpos femininos

1. O  bombeiro adentra o prédio em chamas e vê uma mulher implorando por socorro. Passa direto e abre a porta de um freezer, de onde tira um recipiente com um embrião congelado.

Abraça-o contra o corpo enquanto o teto despenca. “Vai ficar tudo bem”, promete ao zigoto, que não esboça reação. Fora do prédio, o bombeiro é recebido com aplausos, abafando o último grito da mulher que sucumbe ao fogo.

Para conhecer esse herói, basta defender a descriminalização do aborto. Ele surgirá em meio ao incêndio provocado pela declaração, fazendo o que considera o seu dever: salvar vidas. Seu impulso protetor sufoca e mata mulheres todos os dias. A humanização do embrião é uma cortina de fumaça que encobre a desumanização dos corpos femininos.

2. Quando certa manhã acordou de sonhos intranquilos, a mulher em idade fértil encontrou-se em sua cama metamorfoseada numa incubadora neonatal.

Estava deitada de costas sobre sua carcaça —uma câmara com sensor de temperatura, lâmpadas ultravioleta e fonte de oxigênio. Havia se transformado em uma máquina cuja função era garantir um ambiente termoneutro para o pleno desenvolvimento de um bebê.

Não era um sonho. Não existiam mais sonhos que não fossem garantir um ambiente termoneutro para o pleno desenvolvimento de um bebê. Não havia sido projetada para presidir uma empresa ou disputar um campeonato de balonismo, mas não se deu por vencida. Foi trabalhar como se nada tivesse acontecido. Os pedestres a encaravam como se ela fosse transparente —e ela era.

E o que mais chocava na visão de uma incubadora com uma bolsa atravessada esperando o ônibus era o vazio notório em seu ventre de acrílico.

3. Gol do Bruno Henrique, toca a campainha. São representantes do governo em busca de apoio na luta contra o aborto.

O cidadão de bem cede sua assinatura sem tirar os olhos da tela verde. Mas não se tratava de abaixo-assinado e, sim, de termo de compromisso que o obriga a se submeter a uma vasectomia e o inclui automaticamente na fila de adoção.

Agora, ele não tem escolha a não ser lidar com as consequências de seus atos. Já não pode decidir pelo próprio corpo e pela própria vida.

Só queria assistir ao jogo do Flamengo em paz.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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