terça-feira, 17 de março de 2020

O amor nos tempos de Covid-19

A despensa ainda estava cheia quando o estoque de paciência se esgotou. Fadados à companhia um do outro, o casal não conseguia nem sequer escolher um filme na Netflix ou uma playlist do Spotify sem discutir. Acabaram optando pelo divórcio.
Agora, se sentiam confinados em um reality que poderia se chamar “De Quarentena com o Ex”. Como o sexo é parte fundamental desse tipo de programa, logo tiveram uma recaída, e ela acabou engravidando. O filho do ex-casal seria só mais um dentre tantos bebês da geração “coronnial”, concebidos durante a quarentena.
Já Mathias e João estavam mais unidos do que nunca, e pela mesma causa. Passavam a maior parte do tempo tuitando do sofá da sala, parcialmente destruído por seu cachorro entediado. O casal encontrou outra maneira de driblar o tédio e lançou a campanha de cancelamento do ano. A hashtag #2020cancelado não demorou a chegar aos “trending topics”. Infelizmente, o ativismo de sofá não surtiu efeito, e 2020 seguiu seus dias, imune às críticas. Os pais de pet se deram conta de que valia mais a pena gastar suas energias jogando a bolinha para o cachorro.
Suzana chegou em casa e pôde enfim tirar a máscara, pensando nos olhares que recebeu no trem lotado.
Não sabia se eram de cobiça por seu item de luxo ou por receio de ela estar doente. A verdade é que aquele moço de camisa listrada que também desceu em Oswaldo Cruz estava flertando com ela. Suzana estava cansada demais para perceber isso, depois de fazer uma faxina redobrada na casa de sua patroa, que estava de quarentena. Eles acabariam se reencontrando dias depois, na fila de um posto de saúde, e descobrindo o tanto de coisas que tinham em comum.
Sentiu dores no polegar direito, mas era só uma tendinite causada pelo uso excessivo do Tinder. O aplicativo estava bombando como nunca, mas ninguém queria pegar ninguém. Larissa tentou atrair seus matches com nudes, mas o que eles queriam ver mesmo era um atestado médico. Mesmo disparando emojis de foguinho em massa, a única coisa que esquentou foi sua temperatura corporal.
Não tinha o hábito de limpar o celular quando chegava em casa, abrigando uma orgia virótica embaixo de seu nariz. Foi o coronavírus que a acabou levando para a cama.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.

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