terça-feira, 31 de março de 2020

Ficar em casa por dias sendo consumida pela paranoia é minha especialidade

ia um: Li que uma das táticas dos chineses para atravessar o período de isolamento era escrever um diário. Bom, cá estamos. Preciso confessar uma coisa. Ficar em casa por dias a fio sendo consumida pela paranoia é minha especialidade há anos, então acho que vou tirar essa quarentena de letra.
Dia dois: Se não fosse pelos “pandememes”, eu já teria enlouquecido.
Dia três: Fui ao supermercado e fiquei surpresa com o movimento na rua. Idosos, aos bandos, circulavam livremente, quebrando regras, rindo na cara do perigo. Talvez não tenham uma rede de apoio que faça suas compras, talvez tenham ignorado o apelo de seus familiares, talvez tenham levado a sério as recomendações do presidente, vai saber.
Dia quatro: A Organização Mundial da Saúde poderia ter avisado que relacionamentos com mais de sete anos em quarentena são pacientes de alto risco. Muito se fala sobre o colapso do sistema de saúde, mas, ao fim do isolamento, a vara da Família também vai sentir o impacto do coronavírus com a quantidade de separações.
Dia cinco: Convencida de que o vizinho de cima estava dando uma festa, fui até lá disposta a achatar a curva da cara dele. Mas o rapaz só estava mudando a arrumação dos móveis ouvindo DJ Alok nas alturas.
Dia seis: Quando acho que estou perdendo a noção da realidade, penso em Jair Bolsonaro. Não que isso me deixe mais calma. Eu nunca vou perdoar o presidente pela campanha natimorta #OBrasilNãoPodeParar e por fazer o Witzel e o Doria parecerem fadas sensatas.
Dia sete: Estou rouca. Não sei se é Covid-19 ou se gritei muito ontem durante o panelaço contra o governo. Nessas horas eu só queria estar confinada com o Drauzio Varella.
Dia oito: Há um mês estávamos nas ruas, aglomerados, purpurinados, suados e seminus, sem temer perdigoto algum. Parece que foi no século passado. Aquela música do Chico, “Vai Passar”, não me sai da cabeça. “E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia, que se chamava Carnaval...”
Dia nove: Pode ser o tédio falando, mas eu adoraria que uma carreata contra a quarentena passasse na minha rua só para desovar parte do meu estoque de ovos caipiras em uma Tucson.
Dia dez: Ser testemunha ocular da história é bem mais estressante do que eu imaginava. Só espero que na semana que vem a gente ainda consiga rir dos “pandememes”.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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