terça-feira, 10 de março de 2020

Carta aberta de um clitóris sensível

Escrevo esta carta à meia-luz, sob a renda de uma calcinha de poliéster. Uma calcinha bonitinha, mas ordinária, que costuma incomodar minhas vizinhas, conhecidas popularmente como vulva e vagina.
“Popularmente” talvez seja uma palavra muito forte. A vulva, apesar de extrovertida, é frequentemente confundida com a vagina, e isso as deixa mais irritadas do que qualquer calcinha de poliéster. Melhor abafar o caso.
Não venho por meio desta reclamar da minha vizinhança. Sempre nos resolvemos muito bem internamente. Gosto daqui, apesar de ser uma região um tanto desvalorizada e do IPTU ser caríssimo. Isso sem contar o controle excessivo exercido pelas autoridades. O útero que o diga.
Me desculpem se ainda não me apresentei. Alguns me chamam de botão, binguelo, pito, periquito, grelo, Cleiton, Clinton, Clint Eastwood...
Prazer, clitóris. O duplo sentido não foi intencional. Escrever não é exatamente a minha função. Sentir prazer, sim.
Usando esses termos, posso até parecer hedonista, mas se engana quem pensa que produzir orgasmos femininos é uma tarefa fácil. Séculos se passaram até meu trabalho ser reconhecido. Vivi nas sombras por muito tempo, solenemente ignorado por cientistas e por grande parte da população masculina.
Minha anatomia completa, duas vezes maior do que se imaginava até então, foi descoberta apenas no final da década de 1990. A primeira vez que passei por uma ressonância computadorizada enquanto estava estimulado foi em 2009 —esse dia foi bem louco—, quando descobriram que todo orgasmo é clitoriano, desmontando enfim a farsa do orgasmo vaginal. Que fique claro que a vagina nunca quis 
usurpar os meus créditos, então isso foi um grande alívio para ambos.
Hoje, ainda vigora a crença popular de que os homens não conseguem me encontrar. Isso é mito. Os homens sabem muito bem onde estou, só me ignoram por livre e espontânea vontade e seguem em frente com seus objetivos, com a mesma frieza de quem dribla um voluntário da Unicef na rua e acelera o passo.
Por isso, fica aqui o apelo aos rapazes. Por que tamanho desprezo? Posso ter uma glande menor que a de vocês, mas sou muito mais sensível: tenho o dobro de terminações nervosas do que o pênis e minha Lua é em Peixes. Saiba que não guardo rancor e tenho certeza que podemos ser grandes amigos. Tire suas dúvidas com minha proprietária, agende uma visita.
E se você que está me lendo é mulher e sabe usufruir da minha companhia, saiba que você é privilegiada sim. Pelo menos nesse aspecto.

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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