quarta-feira, 6 de março de 2019

Atos suspeitos de pessoas de bem

Como tantos outros médicos nazistas, o doutor Nehle encontrava prazer ao torturar suas vítimas. Mas havia uma diferença. Ele queria que os prisioneiros do campo se entregassem voluntariamente aos seus 
experimentos sem anestesia. Prometia-lhes, em troca, a “liberdade”. Bom, nem tanto. Apenas a transferência para um campo onde a morte fosse menos certa.
A personagem foi criada pelo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), em sua novela de horror policial “A Suspeita”, publicada há anos, que a Estação Liberdade planeja relançar.
Já publicou, por enquanto, uma nova tradução de “A Pane” e de “A Promessa”, num único volume. São também histórias policiais, embora a classificação tenda a reduzir sua profundidade.
“A Pane” é um clássico do século 20, próximo de “O Estrangeiro”, de Camus, na sua objetividade sobressaltada e breve. Dürrenmatt, que aliás era péssimo e perigoso motorista, faz um cidadão de bem procurar ajuda numa mansão isolada, depois de um enguiço sem gravidade no seu Studebaker.
A marca do carro não tem importância nenhuma, mas Dürrenmatt gosta de se referir a produtos e anúncios reais: sapatos Bally, chocolate Lindt, revista Life. É a normalidade próspera do 
pós-Guerra europeu.
A culpa dos “cidadãos de bem” é explorada em “A Pane” numa espécie de sessão embriagada de justiça.
Já “A Promessa” traz uma pequena novidade no gênero policial. Interessa mais esclarecer o comportamento do detetive do que as razões do criminoso. Aparentemente, o caso estava resolvido: o suspeito de ser um assassino de crianças confessa seu crime e se mata.
O investigador Matthäi abandona uma carreira promissora e se torna dono de um posto de gasolina, afogando-se na ruína alcoólica. Não, não é o verdadeiro criminoso.
Mas é como se os caminhos da justiça e da verdade —não digo propriamente do Bem— fossem mais tortuosos do que os do Mal. Ao contrário das narrativas policiais clássicas, em que algum erro de detalhe leva à descoberta do assassino, no mundo de Dürrenmatt os crimes tendem a ser perfeitos, e os detetives sofrem de um excesso de confiança e de bastante falta de imaginação.
É algo que se pode, sem dúvida, atribuir aos cidadãos suíços. Mas Dürrenmatt não pretende confundir-se com seus compatriotas. O esforço de “normalizar” a Alemanha e a França depois de 1945 levou, como se sabe, a décadas de relativo silêncio sobre as responsabilidades coletivas no extermínio dos judeus. Mais do que isso, cuidou-se de absolver e anistiar, em etapas, muitos dos que se envolveram no genocídio.
Em mais de 650 páginas, a pesquisadora Mary Fulbrook dá conta desse processo de “lavagem de culpa” em “Reckonings” (que poderíamos traduzir por ajuste de contas), editado neste ano pela Oxford University Press.
Lorota alguém dizer que “não sabia de nada” durante os horrores do nazismo. Muitos julgamentos do pós-Guerra na Alemanha tiveram a presidi-los os mesmos juízes ativos no regime de Hitler.
“Testemunhos de sobreviventes eram descartados”, diz a resenha de “Reckonings” no Times Literary Supplement, se eles não soubessem precisar a data e a hora das barbaridades cometidas —algo evidentemente impossível de ser lembrado para quem vivesse a rotina de um campo de concentração.
Havia também um argumento jurídico interessante: ao matar suas vítimas, os oficiais nazistas não estavam contrariando nenhuma lei. E não há crime sem lei anterior que a defina!
Sobra anestesia para os criminosos, e fazer justiça —como tentam os personagens de “A Promessa” e “A Suspeita”— torna-se uma tarefa equívoca. Talvez por se insurgir contra a “normalidade” vigente, os livros de Dürrenmatt quase rompem os limites da credibilidade, do bom gosto e da simplicidade de estilo. Grandes tiradas retóricas, falas algo teatrais se destacam, não sem prazer para o leitor, do cenário limpo e realista.
“Nunca tive os romances policiais em alta conta”, diz um personagem. “Como os políticos fracassam de 
maneira tão criminosa, as pessoas esperam que ao menos a polícia possa botar ordem no mundo, mesmo que eu não consiga imaginar esperança pior do que essa.”
Policiais contra políticos? Só? Que tal milicianos? Os “cidadãos de bem” parecem concordar.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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