sexta-feira, 24 de março de 2017

Uma puladinha de cerca em 20 anos?

Carol, amiga antiga, me pediu que saísse da reunião e fosse rápido pra sua casa: "Não paro de pensar besteira". Como assim, Carol? É só o que eu fiz minha vida inteira e nunca tirei ninguém do trabalho por conta disso. "Vem logo, o Paulo me traiu e eu não tô bem."
Depois de 19 anos de casamento (já começa daí: quem casa com 20 anos?) ela havia descoberto uma traição do marido. Oi? UMA? Amiga, vamos fazer uma festa surpresa pro seu marido? Uma única e singela traição de amado Paulo depois de quase 20 anos de casamento? Que é isso? Ele quer aparecer no "Fantástico"? Quer convite pra cear com o papa? Quer ter o busto imponente e corajoso como ponto turístico no centro da cidade? Quer virar boneco de pano politicamente correto (algodão natural, tecido orgânico, olhos verdes feitos a partir do reaproveitamento de garrafas PET) para crianças lactentes? Não, Carol, deve ter mais. Não é possível. Poxa, o Paulo sempre me pareceu um cara normal, gente boa, da paz. Ele não faria isso com a gente. Vamos investigar, peloamor, deve ter mais.
Carol não estava pra piada. Inconformada, arrasada, um trapo humano, ela só conseguia pensar em facas, armas, sangue, coisas quebradas e picotadas. Só conseguia pensar em besteiras. "Como ele pôde fazer isso comigo depois de tanto tempo?"
Como ele pôde fazer isso COM ELE depois de tanto tempo. Uma puladinha de cerca em 20 anos? Por Deus. Falemos a verdade! Primeiro: esse homem te ama. Segundo: o que meia horinha do desejo do outro tem a ver com a gente? Paulo não arrumou uma amante fixa, não jurou filhos e eternidade em outra casa, não se apoiou em dupla personalidade pra sobreviver a um amor falido. Não chegou com o coração enlevado (e o ventre melado) e, por meses ou anos, se deitou ao lado de Carol. Paulo, em 20 anos de casamento, foi ali dar uma voltinha. Meia horinha porque era quarta e a vida é dura. Aff, minha gente, Paulo é humano. Quiçá, um herói.
Carol, lembra ano passado, quando fomos na festa de final de ano daquela produtora? Você ficou de papinho com um cara e... "Não dá pra comparar. Eu estava chateada com o Paulo. Já o Paulo me traiu porque não presta mesmo". Ah, tá resolvido então! Mulher trai porque tá #chateada, homem porque "está em seu DNA". Que bela desculpa (machista!) nós inventamos pra galinhar. "Não era tesão, era mágoa". Sei.
Carol, o Paulo esteve a seu lado quando você inventou que era artista plástica. Lembra? Você largou seu emprego pra pintar aqueles quadros horrorosos, que os amigos compravam por pena. O Paulo ia nos vernissages, tirava fotos, divulgava, aturava seu bafo de nervosismo. Isso é fidelidade. A maior delas. Depois teve a fase "vou reformar a sala pela décima vez". Lembra? Japonesa, tailandesa, nova-iorquina com canos aparentes, com muitos quadros, sem paredes... sua casa esteve em obras por tanto tempo que o cheiro de tinta me lembra mais você que o seu próprio cheiro. E o Paulo apoiando sua esquizofrenia arquitetônica, sabendo que a loucura de trepar há 20 anos com um mesmo ser tinha que vazar pra algum lado. No fundo você queria era mudar a instalação peniana ao lado do sofá. Você queria era variar os objetos do seu design interior. Mas Paulo, que homem, ainda opinava nas almofadas. Ele só queria te ver feliz. Isso é fidelidade. A maior delas.
Façamos assim. Eu volto pra minha reunião e essa faca volta pra gaveta da cozinha. Essa tesoura, pra gaveta do escritório. Nós, todavia, já deveríamos ter saído do armário do puritanismo há muito tempo.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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