sábado, 17 de dezembro de 2022

Dezembro é foda


Quando eu era criança, meus avós maternos achavam dezembro um mês tristíssimo. Diziam que já tinham sofrido a morte de muitos amigos e parentes –incluindo a mais impensável de todas, a de um filho — e que, por isso, não conseguiriam comemorar mais nada na vida.

No entanto, celebravam jogos do Palmeiras, Copas do Mundo, aniversários, Páscoa. Era só dezembro que pegava pra eles. E como pegava! Meu avô tinha o "troço" (que é igualzinho ao meu "negócio", mas agora sabemos que se chama crise de pânico), e minha avó ficava com questões intestinais agudíssimas, soltava uma quantidade invejável de palavrões portugueses, contava a famigerada história de que, por conta de uma promessa, nunca mais poderia dizer a frase "estou com preguiça" (fazia uma mímica pra gente entender) e, por fim, chorava e ia dormir.

Na adolescência, notei que ocorriam fenômenos parecidos com meus pais. Era só chegar o final do ano para eles ficarem à flor da pele: "Dezembro é foda!". Evitavam sair de casa por causa do trânsito insuportável e do comportamento "apressado e violento" das pessoas; faziam as compras no começo de novembro para não verem os enfeites nos shoppings "sem saber direito o motivo"; e, de repente, todos aqueles amigos mais importantes não eram "exatamente como alguém da família", todos os parentes mais próximos não eram "exatamente o que podemos chamar de pessoas amigas".

Desde que tenho lembranças dos meus Natais, passei todos desejando que minha família pudesse aumentar. Filha única de pais separados, eu também era neta única e, obviamente, sobrinha única.

Sonhava que as poucas pessoas ali reunidas fossem mais tolas e emotivas. Eu fui criada numa espécie de hub do cinismo e do deboche. A gente tirava sarro de tudo e, sobretudo, de nós mesmos. Se passássemos a ceia com uma tia qualquer, ainda que por meia hora (meu avô detestava sair de casa), tal passeio rendia meses de deliciosas maldades e infinitas imitações.

A mordacidade, como tática de sobrevivência no mundo e no meu trabalho como roteirista de humor, é um talento vantajoso e recreativo em todos os outros meses do ano. Mas é absolutamente inútil e cruel em se tratando de dezembro. Ser uma pessoa irônica, em dezembro, é complicadíssimo. O mundo aparentemente está acreditando em absurdos como o amor e a fé, e você está lá, sozinha, montando esquetes que misturam libertinagem com escatologia em sua cabecinha doente.

Depois que meus avós morreram, minha mãe piorou muito. Passei a notar em seu rosto aquele semblante heroico de quem internaliza o mantra: "Vai, não adoece não, mais um ano! Força! Você é pobre demais pra abraçar a depressão!".

Hoje fica claro para mim que sou fruto de uma família que ria muito e não aparentava grande tristeza, mas era sim deprimida. E sei disso porque tenho a mesma doença. Nada grave que os paralisassem no resto do ano –apenas em dezembro. Nada grave que me bote de cama nos outros meses do ano –somente em dezembro. Eu tentei correr. Eu sou a única maçã da árvore da depressão da minha família que fez de tudo para cair muito longe. Eu rolei, dancei, capotei, me lancei, me esfolei inteira. Mudei de povoado, de arredores, de nome, de voz. E também fiz muita terapia. Apodreci e voltei verde e apodreci e voltei verde. Um looping ensimesmado e repetitivo de negação genética, cognitiva, espiritual, existencial e psicológica.

E isso tudo –ai, ai, dezembro é mesmo foda e já estou chorando– só me deixou ainda mais deprimida. (Saudade da angústia de não pertencimento que nos unia. Tinha sim muito amor, muita fé e muito Natal).


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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