terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Palavras de nossos professores passam a fazer parte de quem tentamos nos tornar


Na sexta-feira (18), durante o vendaval provocado pela tempestade Eunice, defendi a minha tese de doutorado e —embora o clima fosse digno de maus presságios, com um amigo a mencionar que as bruxas de "Macbeth" estavam chegando para testemunhar a minha defesa—, tive a sorte de contar com uma banca de avaliadores de ânimo solar, composta por professoras cujo trabalho acadêmico e postura profissional sempre me serviram de exemplo.

Assim, a coisa que sempre temi, por imaginar ser algo semelhante à cena de tortura em "Cassino Royale", de Ian Fleming, em que James Bond quase perde os seus mais preciosos órgãos, mostrou-se bastante acolhedora, e o debate entre os participantes fluiu de modo a apontar maneiras de levar o meu trabalho adiante. Saí da experiência enriquecida, com a sensação de que os meus esforços dos últimos cinco anos foram justificados e que, agora, eu estaria livre para seguir o meu caminho.

Horas antes, no entanto, tive um acesso de choro e liguei para a minha mãe, pois as últimas semanas haviam sido marcadas por eventos que sinalizavam a importância do momento por vir.

Desde janeiro, trabalhando incessantemente em candidaturas de bolsas de pesquisa, tive várias conversas com a minha antiga orientadora de mestrado, escrevi cartas de apresentação, atualizei o currículo e, nesse processo, de tanto revirar os meus papéis, encontrei o meu primeiro boletim escolar assinado por Ariane de Lima Tavares Silva, minha professora de alfabetização no colégio Equipe, em Recife.

Não sei se ela continua viva ou se ainda dá aulas na mesma escola. Desconheço, inclusive, se Ariane é assinante da Folha. Mas gostaria de deixar registrado em algum lugar que ainda tenho lembrança de muitas das nossas aulas e que "O Rabanete Gigante", livro que ela nos deu de presente ao concluirmos os estudos daquele ano, foi a primeira obra sobre a qual me debrucei com afinco.

Ariane ensinou-me a ler e a entender o mundo através das palavras. No ano seguinte, uma nova professora, Sonja, apresentou-me a música de Milton Nascimento e disse que eu precisava melhorar o meu ritmo de trabalho, pois eu insistia em fazer tudo ao meu próprio tempo, sendo, muitas vezes, uma das últimas crianças a deixar a sala.

Depois veio Márcia, professora da segunda série, com quem a nossa classe ou, pelo menos, os meus amigos mais próximos —a turma que passava o recreio na biblioteca lendo o "Guia do Escoteiro Mirim"— nunca se deu muito bem porque ela sempre acabava perdendo a paciência na hora de nos ensinar matemática.

Márcia faleceu de repente no final daquele ano letivo, deixando-nos aflitos. Pois, além de ainda não conhecermos palavras para explicar a arbitrariedade com a qual a morte muitas vezes se apresenta, tínhamos colocado na cabeça que aquilo só poderia mesmo ser culpa nossa. E foi esse primeiro contato com a morte que me aproximou da filosofia.

Muitos outros professores passaram pela minha vida escolar. Alguns foram quase que totalmente esquecidos, outros deixaram forte impressão. Lúcia Costa, professora de história, talvez não saiba disso, mas, antes mesmo de nos conhecermos, eu fingia ter vontade de ir ao banheiro só para passar algum tempo no corredor a escutar as suas aulas.

Depois, já mais velha, quando finalmente tornei-me sua aluna, ela levou a nossa turma para conhecer o Rio de Janeiro. Aquilo para mim foi a realização de um sonho e, ainda hoje, aquelas primeiras lembranças que eu tenho do Rio informam todas as minhas leituras de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Rubem Fonseca e Machado de Assis.

Beth Cardoso, minha professora de inglês da quinta à oitava série, foi uma das primeiras pessoas para quem eu tive coragem de mostrar algo escrito por mim: uma poesia. A partir de então, passamos a discutir literatura, música e cinema. Permanecemos amigas e, hoje, os netos de Beth regulam a idade que eu tinha quando nos conhecemos.

Contudo, tem uma professora, Iara Arteiro, a quem muito devo. Pois foi ela quem, com infinita paciência, mesmo sabendo que biologia, química e física jamais seriam as minhas disciplinas prediletas, despertou o meu gosto pela vida acadêmica.

Além de estar conosco em sala de aula, Iara costumava coordenar as nossas feiras de ciências e foi ela quem me ensinou a montar um projeto de pesquisa e incentivou-me a questionar os autores que, para mim, pareciam ter dito verdades absolutas.

O dia em que vi Iara criticar alguns aspectos do pensamento de Aristóteles com argumentos bem-formulados, pautados em suas leituras de anos, talvez décadas, foi o dia em que finalmente compreendi que o conhecimento é vivo e que ele se estabelece a partir de uma incessante troca, sem que isso signifique, necessariamente, que a antiguidade de uns tenha primazia ante a novidade dos demais.

Pois, no plano das ideias, estamos irremediavelmente ligados uns aos outros e, por isso mesmo, permanecemos, até certo ponto, contemporâneos.

Há uma narrativa talmúdica que ilustra essa dinâmica. Antes de entregar a Torá, Deus teria passado algum tempo desenhando, com muito esmero, coroas no topo das letras. Moisés, apressado, porém não menos curioso, perguntou o porquê de tanta firula. Deus então explicou que no futuro surgiria um homem, Rabi Akiva, que conheceria aquele texto de cabo a rabo e dele seria capaz de extrair uma porção de leis; aquelas coroas, portanto, seriam para ele.

Enciumado, Moisés teria pedido a Deus para ver Akiva. O seu pedido é atendido. Ele é transportado no tempo e, por alguns instantes, testemunha o debate entre o sábio e os seus discípulos. Logo alguém pergunta: "Akiva, de onde você tirou isso?" e ele responde: "Esta é uma lei dada a Moisés no Monte Sinai e transmitida para sucessivas gerações." Então Moisés, que tudo observava, reconforta-se, pois o seu nome e os seus esforços seriam devidamente lembrados.

Ao nos preparar para a vida, os nossos professores esforçam-se para que, durante a transmissão do conhecimento, cada pequeno detalhe mostre-se capaz de despertar a nossa curiosidade intelectual. Ao fim e ao cabo dessa tarefa, permanecemos parceiros.

As suas palavras, somadas a tudo aquilo que vivemos e descobrimos juntos, passam a fazer parte do que um dia, quem sabe, conseguiremos nos tornar.


Texto de Juliana de Albuquerque, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário