quinta-feira, 25 de novembro de 2021

O nome do que aconteceu em São Gonçalo é chacina


Descrever a matança na voz passiva diz muito sobre a falta que nos faz uma democracia: "Oito pessoas foram encontradas mortas" em São Gonçalo (RJ), lê-se na capa da Folha na segunda (22). "Dois deles não tinham antecedentes criminais", lê-se na capa do jornal na terça (23). "Não tinha passagem pela polícia" ou "tinha", lê-se no obituário "quem são as nove vítimas" no jornal na quarta (24), como se nada mais precisasse ser dito.

Como já cantara Nina Simone sobre corpos negros pendurados como estranhas frutas em árvores de sangue, parece que nos acostumamos a naturalizar que corpos mortos brotem em geração espontânea em matagais, sejam colhidos como frutas pela população em lençóis brancos e, ao cabo, ainda lembremos --como se isso autorizasse a pena de morte-- quem possui ou não antecedentes.

Ninguém pode ser executado extrajudicialmente, não importa quem seja: ou estamos dispostos, neste jornal e na sociedade, a chamar o horror pelo nome ou desistamos do ofício de dizer a verdade ao poder.
Eis o que houve: chacina. Chacina, etimologicamente, pode ter ingressado na língua portuguesa entre os séculos 13 e 15, de "caro siccina" ou "carne seca". Moradores em São Gonçalo, na melhor reportagem deste jornal a respeito, relatam que policiais fizeram churrasco na região da chacina, mataram, torturaram e ainda roubaram dinheiro, pistolas e fuzis.

Polícia executa por vingança (no mesmo dia em que policial é morto, a chance de um civil ser morto é de 1.150%; no dia seguinte, 350%). Polícia do RJ ri da cara do STF (descumpre a decisão da corte ao não informar quase metade das operações). Polícia no RJ mata para controlar território, não para combater crime (há quatro vezes mais operações em territórios de tráfico do que de milícia). Polícia no RJ está pouco se importando com investigação imparcial (o isolamento para perícia nem foi feito).

churrasco dos policiais em São Gonçalo é a chacina que escancara as tripas do autoritarismo que ainda aplaudimos.


Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

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