sábado, 6 de novembro de 2021

Depredada, Gol não mostrou um fiapo de solidariedade


O bebê ficou sete horas no avião e no aeroporto. O suplício começou quando o voo da Gol teve de voltar a São Paulo devido à chuva em Belo Horizonte. São coisas que acontecem. Quando ocorrem, as regras do setor dizem que as empresas têm de alimentar e hospedar os passageiros.

Mas trancaram o bebê por três horas no avião, em Guarulhos, sem leite nem fraldas. Quando desembarcou com os pais, Kênia e Alexandre, os três foram ao balcão da companhia. Toparam com funcionários que mentiam e enrolavam. Nada de papinha e berço.

Não houve um fiapo de solidariedade por parte da empresa. Quem arrumou uma fralda foi uma mulher na fila. "Tinha gente sem máscara, crianças espalhadas pelo chão, idosos sem o conforto devido", contou Alexandre. Boa, Gol. Não se deve dar mole com essa gente.

Com cinco meses, o bebê chorava. De fome. "Entramos em desespero", contou o pai. "Surtei", assumiu Kênia. Partiram para o pau e depredaram o balcão da Gol. São coisas que acontecem. "Óbvio que erramos", reconheceu ela.

Do nada, surgiram oito policiais para enfrentar os perigosos black blocs. A empresa, sensível, pôs o bebê e os pais num hotel a 1h30 de Guarulhos. O casal se dispôs a pagar R$ 5.000 pelo monstruoso prejuízo que deu à Gol, coitada.

Não adiantou. No dia seguinte, ao chegarem para embarcar, o bebê e o casal foram recebidos por quatro bondosos funcionários da companhia. Um deles avisou: "A Gol não aceita vocês no voo, vão em outra companhia". Bravo, rapazes. Se a gente dá a mão, eles querem o braço.

A bem da verdade, registre-se que os atrasos são raros. Eis aqui o testemunho de quem encarou dezenas de voos atrasados. Como mostram as estatísticas das empresas aéreas, todos eles ocorreram quando eu estava na fila. Coincidências acontecem, poxa.

Tive surpresas com empresas, agências regulatórias e autoridades ao buscar meus direitos. Sabe quantas vezes disseram que tinha razão? Nenhuma. Não adiantou reclamar com a turma. Como dizia Tonto a Zorro: eles são muitos.

São muitos e estão em todos os cantos. A agressão ao bebê não se deu num rincão remoto e arcaico. Ocorreu no maior aeroporto da América Latina, no núcleo nevrálgico da excelência nacional. Não foi obra do nosso decantado atraso, e sim do progresso em vigor.

É injusto circunscrever à Gol o modus operandi com o bebê. Que Alá a livre, leitora, de querelas com planos de saúde, seguradoras, telefônicas, operadoras de internet, canais a cabo e quejandos. Anote o número do protocolo da sua queixa: 011w2#3yz76§j29.

Ah, não gostou? Vai para Cuba.

Dizer que empresas de ponta são ineptas é outra injustiça. Experimente atrasar uma mensalidade. Seus departamentos de cobrança lhe cairão com as quatro patas no pescoço. Tente processá-las. Seus advogados lhe tirarão o sono e o couro. Acontece; sempre.

Há, contudo, querelantes convictos. A Gol, por exemplo, foi aos tribunais pencas de vezes, acusada de corrupção, usar trabalho escravo e dever R$ 240 milhões ao INSS. Infalivelmente, foi absolvida.

Em 2017, o criador da companhia, Nenê Constantino, foi condenado por um assassinato que cometeu em 2009. Como estava velho, a Justiça não o deixou um dia na cadeia. A justiça tarda, mas não falha. Por essas e por outras, como a do bebê, o clã Constantino tem US$ 6,6 bilhões.

Uma última injustiça seria ver no episódio um atestado de que a nação toda é disfuncional. Ela não é. Porque o caso diz respeito apenas a quem pode pegar avião, a acabrunhada classe média. O povão toma ônibus, usa o SUS, não tem seguros. A maioria nem cidadã é.

Uma amiga foi morar em Marsilac, no fim do fundo da zona sul. Pegou dois ônibus lotados para voltar do centro para casa. Levou quatro horas no calvário, que não teve contratempos. É uma viagem corriqueira. Milhares de pessoas a fazem todo dia, duas vezes, para trabalhar.

O que mais a comoveu foi o silêncio, os rostos derrotados, a resignação. Se um dia os passageiros derem uma de Kênia e Alexandre, em dois minutos a PM baixará o sarrafo nos desordeiros. É assim que tem de ser, dizem os que lucram com a normalidade. Para eles, o Brasil funciona —porque funciona para eles.

Mas o país anda um tanto tenso e atritado. Isso faz que se abram brechas como as reportagens sobre o bebê feitas por Douglas Gavras, da Folha, e Maria Lúcia Gontijo, do G1. Elas foram tão mais pertinentes porque a Gol é um grande anunciante. Mas poucos ligam. É cada um por si e Deus contra todos. São coisas que acontecem, passam.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

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