terça-feira, 10 de novembro de 2020

Seria a política sempre objeto, em grande medida, da esfera mítica?

 Há muito a análise de comportamento em política sepultou os mitos da democracia.

As pessoas nunca discutiram política pra construírem uma consciência crítica, mas sim pra escorraçar o oponente. Independentemente do nível educacional dos envolvidos. A maioria das pessoas é movida por ideias fixas em política ou por puro e simples desinteresse. E, quando se tornam mais interessadas, pesquisam para reforçar as suas ideias fixas.

Os desinteressados em política justificam a sua ignorância racionalmente: gasto minha energia escolhendo meu celular porque eu decido qual comprar. Meu voto é miseravelmente irrelevante: é um só, nada decide.

A ideia de uma política majoritariamente racional é uma lenda. Nossa relação com a política é mediada por estruturas passionais. Levemos a sério a ideia de que a racionalidade, na espécie, seja uma evolução tardia e não plenamente bem-sucedida.

O filósofo Ernst Cassirer (1874-1945) era membro da chamada escola neokantiana de Marburg, na Alemanha. Fugiu de lá por ser judeu. Neokantianos são uma mistura de Kant com Hegel. Mas deixemos para lá esses detalhes mais técnicos.

Trago Cassirer para o nosso debate por causa de sua teoria das formas simbólicas, esquecida por muitos afeitos às modas teóricas de ocasião, mas que pode nos ajudar em muito a entender a política como mito.

Para Cassirer somos um animal simbólico. Abelhas fazem mel; aranhas, teias; nós, símbolos. Pensar o homem como animal simbólico é comum em autores como Carl Gustav Jung, Joseph Campbell e Mircea Eliade, entre outros. Segundo Cassirer, dito de forma sintética, existem três grandes grupos de formas simbólicas, não necessariamente constituindo uma hierarquia entre elas, mas que são bem distintas na sua operação de entendimento da realidade e de ação sobre ela. Entretanto, vale dizer que elas podem operar conjuntamente, não representando obrigatoriamente qualquer exclusão entre elas.

A primeira é a mítico-religiosa. Essa atravessa construções simbólicas como as religiões e suas narrativas cosmogônicas (narrativas de criação do mundo) e míticas, com seus personagens divinos, humanos e heroicos, “explicando” a vida, a política, a moral e a história (ou destino).

A segunda é a estética. Essa se manifesta na arte e afins. Sustentada nas narrativas de fundo sensorial, transita pelas diversas formas artísticas, não só figurativas. É claro que essa dialoga profundamente com a dimensão mítico-religiosa. Para alguns, a primeira seria redutível à segunda na medida em que religiões, mitos e crenças são criações simbólicas estéticas. Entretanto, para a forma mítica, há uma objetividade absoluta no mito e não a subjetiva do artista. O mito é, a arte inventa.

A terceira é a lógico-empírica. Essa implica adentrarmos o espaço do teste empírico da realidade para as construções simbólicas. Isso significa que não podemos construir símbolos aqui sem a contrapartida da comprovação vinda da realidade. A ciência está aqui, evidentemente. Toda a atividade racional, imbuída de testes de realidade ou de encadeamento lógico do raciocínio, como filosofia, deduções lógicas e afins, é característica dessa terceira forma simbólica.

Pois bem. Em 1946 foi publicado, postumamente, uma pequena pérola escrita por Cassirer chamado o “Mito do Estado”. Neste livro Cassirer analisa o nazismo na chave mítico-religiosa em várias das suas dimensões. A impermeabilidade à experiência crítica e à razão é trazida à luz através das suas categorias míticas de pensamento. Para o autor, o mito sempre teve uma função primordial na vida política e social, assim como na psicologia das emoções. O mito não é “pura estupidez primitiva”, ele é uma forma ancestral de organização e de ação no mundo.

Como disse acima, o mito da democracia não resiste ao teste da realidade. Desse mito faz parte a lenda da racionalidade, da crítica e do diálogo. Uma questão que nos lega Cassirer é: seria a política sempre objeto, em grande medida, da esfera mítica? E se isso for verdade, como fazer a democracia resistir à sua desmitologização?


Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo.

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