quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A borboleta de Rubem Braga

 Em setembro de 1952, o cronista Rubem Braga (1913-1990) fez uma experiência literária e tanto: manteve os leitores pendurados no suspense de um minifolhetim em três capítulos protagonizado por uma borboleta.

Carro-chefe do livro “A Borboleta Amarela”, de 1955, o tríptico saiu no jornal Correio da Manhã como “Borboleta” só (sem número, II e III). Seu sopro de enredo é o voo do bichinho nos arredores da Biblioteca Nacional, no centro do Rio.

Nada acontece propriamente, mas isso não era novidade para os cultores de um gênero que, nas palavras do crítico Antonio Candido, “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza”.

A maestria com que o autor extrai grandeza do miúdo lepidóptero com o qual esbarra na Cinelândia é que dá peso e permanência —por prazo indeterminado— a uma criatura que é a própria encarnação do leve e do fugaz.

Isso se deve primeiro ao talento de Braga para o borboleteio textual. De sua cobertura arborizada em Ipanema, aquele cara rabugento era um especialista em batucar uma prosa de jornal que dizia muito mais do que parecia dizer.

Ocorre que, naquele momento, o voo atingia uma altura rara até para seus padrões. Consta que Clarice Lispector acabou de ler a terceira crônica, passou a mão no telefone e ligou para ele em prantos.

Qual é o segredo desse texto? Bom, não tenho a menor intenção de “empalhar a borboleta”, expressão usada por Millôr Fernandes para criticar os tradutores de Shakespeare que julgava eruditos demais —e escritores de menos.

Seria ridículo tentar destrinchar aqui a mágica que faz o maior cronista brasileiro da história atingir aquela voltagem lírica dele. Melhor desfrutar seus textos e pronto. Mas arrisco dizer que a excelência de “A Borboleta Amarela” deve muito à sua duração.

Que os cronistas batiam asas por aí como vadios era sabido. Embora pudessem falar —e muitas vezes falavam, pois encher jornal atrás de jornal era dureza— de notícias, sua matéria-prima principal era o oposto delas.

Braga e seus colegas brilhavam mais ao lidar com o banal, o detalhe revelado por um olhar mais atento ao que constitui o cotidiano do que àquilo que dele se destaca.

Nesse sentido, a borboleta é, para o cronista, uma espécie de assunto ideal: frágil, desimportante e efêmera, mas também bela, “poética”, indutora de sorrisos.

Contudo, ao se desdobrar por dias e virar heroína de série, a borboleta de Braga se torna algo mais enigmático e aflitivo. Pela força de séculos de tradição narrativa, passa a carregar em seu fiapo de corpo o peso da ansiedade leitora. De certa forma, vira notícia.

Trecho do último parágrafo: “Cheguei a receber telefonemas: ‘eu só quero saber o que vai acontecer com essa borboleta’. Havia, no círculo das pessoas íntimas, uma certa expectativa, como se uma borboleta amarela pudesse promover grandes proezas no centro urbano”.

Não podia. No fim ela simplesmente some, ou melhor, o cronista a perde de vista entre edifícios e estátuas, e para disfarçar sua decepção se põe a contemplar umas rolinhas.

Nada aconteceu —ou sim? Que a pergunta sirva de convite à leitura de Braga e da grande crônica brasileira, também conhecida como “gênero menor”.

Há muito tempo tenho vontade de imitar o cronista, fugir das graves notícias que nos assolam e escrever sobre a desimportância de uma borboleta amarela. Que pode acabar sendo, ao seu modo, o mais importante de tudo. Cheguei a pensar que nunca fosse conseguir.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

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