segunda-feira, 13 de julho de 2020

Tem que doer!

Dor é o que eu estou sentindo agora, pois é tão difícil entender este país! Também doía quando criança eu apanhava e às vezes não entendia o porquê. Confesso que mamãe não foi fácil! Ela sempre teve esperança de me manter no bom caminho. Trabalhava de manhã à noite, controlava a disciplina dentro e fora de casa mas, rebelde, segui minha estrada.
Certamente, a minha rebeldia foi devida à falta da figura paterna, como disse o ministro... A ausência de meu pai deve ter sido decisiva e o inimigo atacou! Pondero então com Albert Camus, escritor argelino, que escreveu: “Não é o sofrimento das crianças que se torna revoltante em si mesmo, mas sim que nada justifica tal sofrimento”.
Até hoje sou criança e rebelde, pois mamãe me diz ainda que eu não tenho remédio. Como cientista, pensei em acabar com essa dor cotidiana. Considerei tomar cloroquina, pois vi o presidente outro dia mostrando umas destas caixinhas na internet. Como este fármaco não tem aval científico para o vírus que nos causa tanta dor de cabeça … desisti. Lembrei daquela publicidade antiga que dizia "Tomou Doril, a dor sumiu!" Optei, então, pelo Doril! Agora uso todos os dias em prevenção da dor.
Nesta semana senti o meu caso piorar a cada notícia veiculada. Vi na televisão um imagem muito bizarra. O segundo homem do Ministério da Saúde enxotando de uma reunião um garçon que só tentava fazer o seu trabalho. Com gestos bruscos de braço, gritava "Sai daí. Eu falei 'não'. O que você não entendeu?". Eu, da minha parte não entendi nada. Parece que este homem é coronel de Forças Especiais do Exército. Se ele dá ordens desta maneira, decerto mistura autoridade e autoritarismo.
Senti uma dor súbita e me lembrei daquele fulano, na sala de espera do aeroporto, que com a máscara ostentada como uma coleira, andava de um lado para outro usando o seu telefone celular, falando alto e, provavelmente, cuspindo vírus por toda parte…
Eu, como não apanhei que chegasse da minha mãe, chamei o sujeito pedindo que por favor colocasse a máscara e pensasse nos outros à volta. Ele, além de me dizer que estava vindo de uma estação de esqui isenta de vírus por causa do frio (!), completou com o "Você sabe com quem está falando?".
Que agonia ao concluir que esse pateta brasileiro, cheio de arrogância, acredita que é qualquer coisa neste mundão de Deus… Como diria o Mário Sérgio Cortella, filósofo e educador, um indivíduo como esse é o "vice-treco do sub-troço".
Tomei Doril, mas como a cloroquina, não fez efeito. Lembrei das pessoas que lutam dia e noite para nos livrar da curva ascendente de infecções e mortes pela Covid-19, que as autoridades brasileiras despudoradas tentam ocultar do mundo.
Pensei na agenda ambiental do governo, na Amazônia e sua "Mata Atlântica" e logo na lei de medidas preventivas contra o coronavírus nas terras indígenas, que o presidente sancionou com vetos ao acesso à água potável, a materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.
Este povo brasileiro, os quilombolas e outros povos tradicionais também não terão direito à verba emergencial… Talvez Bolsonaro não tenha apanhado que chegasse da mãe dele, pois não aprende nem com calamidade pública!
A dor se agravou com a decisão do presidente da suprema corte brasileira de mandar as forças-tarefa da Lava Jato compartilharem dados sigilosos de investigações com o procurador-geral da República! Sabem o que é isso? Medo de que a Lava Jato possa passar a investigar pessoas com foro privilegiado.
Soltei um palavrão daqueles bem picantes e conquistei um tabefe bem ardido de minha mãe. Num rompante de rebeldia pedi: "bate mais, mamãe, pois com certeza ainda não estou disciplinada que chegue!".

Texto de Paula Minoprio, na Folha de São Paulo

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