terça-feira, 7 de julho de 2020

A princesa e o delegado

“O cara invadiu minha casa, matou meu bicho de estimação e ainda me beijou enquanto eu dormia.”
“Acho que já ouvi essa história. Que roupa a senhora tava usando?”
“Esse vestido aqui, faz alguma diferença?”
“Dorme arrumada, hein. Não tinha um pijama velho não, uma camiseta do Projeto Tamar, alguma coisa menos chamativa? É seda essa merda?”
“Acho que é cetim. Eu apaguei assim mesmo, acho que minha madrinha me deu um remédio pra dormir.”
“Ah, tava sob efeito de tóxico ainda por cima?”
“Eu fui drogada contra a minha vontade.”
“Sei. O velho golpe do boa noite Cinderela.”
“Por que o golpe se chama boa noite Cinderela se sou eu a princesa que dormiu por mais de cem anos?”
“Porque a Cinderela é rolêzera, inimiga do fim, acabou levando a fama de quem dá mole com o copo na balada e volta toda espandongada pra casa —sem sapato, conversando com os ratos da rua, não sei como não pegou uma leptospirose. Bom. E o que você sabe sobre o elemento que
invadiu a sua residência?”
“Foi o príncipe Philip. Eu ainda tava meio grogue, mas era ele, eu tenho certeza.”
“Príncipe Philip, o filho do... rei? Mas ele é só um garoto.”
“Ele tem 24 anos.”
“O menino Phil é o primeiro na linha de sucessão para o trono. Uma denúncia dessa pode destruir a vida dele. Você não quer pensar um pouco?”
“Não. Eu não tenho nada a ver com isso. Ele precisa pagar pelo que fez.”
“Olha, não quero desanimar, mas esse pessoal é todo blindado. Fora que esse seu relato é um pouco fantasioso.”
“Eu quero dar prosseguimento à denúncia.”
“Essa tua madrinha deve ter jogado uma maldição na minha delegacia também, não é possível. Porque todo dia baixa uma princesinha aqui dando problema. Quando não é sua xará, a Bela, dizendo que foi sequestrada por aquele sugar daddy mal encarado, ou a cleptomaníaca da Ariel roubando a prataria dos outros, é a esquerda caviar da Jasmin se misturando com a plebe, praticando falsidade ideológica, ou a Pocahontas invadindo a fazenda de alguém. Francamente. Vocês deviam dar o exemplo.”
“Por isso mesmo que eu estou aqui. Eu só quero que a justiça seja feita.”
“Então é melhor esperar deitada.”

Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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