quinta-feira, 18 de junho de 2020

Passes que dei contra o Uruguai foram meus grandes momentos na Copa de 1970

São três meses de quarentena. Quando o tédio aperta, me dá vontade de ir a algum lugar que tenha raríssimos casos da doença.

Esses países, antes de começar a epidemia, fecharam tudo. Mesmo com o sucesso do isolamento, continuam alertas, com cuidados. As muitas diferenças entre o Brasil e esses lugares não são justificativas para tantos erros, descasos e irresponsabilidades.

Tenho vontade de ir à Nova Zelândia, pois lá há uma primeira-ministra competente, firme, corajosa, que gosta da ciência, do diálogo e que comanda o país e a epidemia. Quando aparece alguém infectado, há uma intensa investigação dos contatos, dos contatos dos contatos, e assim sucessivamente.

Tenho, às vezes, vontade de ir para outro lugar, mas não vou, pois aqui é meu país, aqui tem pão de queijo com cafezinho, tem, principalmente, o carinho de pessoas queridas.

PARTIDA MAIS PERIGOSA

Dia 17 de junho, 50 anos atrás, o Brasil ganhou do Uruguai por 3 a 1 e foi para a final da Copa de 1970. Foi a partida mais perigosa, por ser mata-mata e porque o Uruguai, que tinha a melhor defesa do Mundial, fez o primeiro gol.

Existe, no Rio de Janeiro, uma tradicional pelada, fundada pelo craque Gerôncio, jogada no campo do Piraquê, com juiz, times uniformizados e tudo mais. Um dos participantes é o professor de engenharia da UFMG Luiz Rafael Palmier (Rafa), que viveu muito tempo no Rio. Ele escreveu um delicioso livro, que, brevemente, será publicado com o nome “A melhor pelada do mundo –50 anos em 50 crônicas dentro de campo”.

Segue o texto de uma das crônicas, “A morosidade genial do rei da área”: “Jorge avança pela lateral esquerda. Está no mesmo lugar do campo em que o craque Tostão se encontra no estádio Jalisco, de Guadalajara, ao dar o fantástico passe para o gol do Clodoaldo, no jogo entre Brasil e Uruguai. Em décimos de segundos, Jorge, inspirado por Tostão, dá o passe com o requinte e o preciso cálculo de que a bola deveria primeiro quicar, para que ficasse à feição para o arremate do genial João, o rei da área, com o pé direito. Mais ainda, por ter cantado o passe, ele supera em muito aquele de Tostão”.

Eu não tenho o talento de Jorge, mas, em minha pretensa sabedoria técnica, suspeito que, sem pensar, inconscientemente, eu tenha, como Jorge, calculado a velocidade da bola e percebido o momento em que ela iria quicar, para chegar, no instante exato, para Clodoaldo finalizar. Existe um saber que antecede ao pensamento.

O segundo gol da seleção contra o Uruguai é o símbolo do futebol revolucionário para a época. O Uruguai atacava, e o Brasil tinha os 11 jogadores recuados. Jairzinho recuperou a bola, e ele, eu e Pelé trocamos passes no próprio campo, e Jairzinho foi receber meu passe na intermediária do Uruguai. Uma aula de contra-ataque moderno.

Naquele gol, como no primeiro, tenho a soberba impressão de que, sem pensar, calculei para que a bola chegasse à frente de Jairzinho e atrás do marcador, já que os dois corriam olhando para gol, e o zagueiro estava dois metros à frente de Jairzinho. Se desse o passe mais longo, o zagueiro chegaria primeiro.

O ser humano, narcisista, enamorado de si mesmo, deseja na vida ter seus momentos de heroísmo, mesmo que seja para os outros algo banal, rotineiro. Os três passes que dei contra o Uruguai, dois para gols e o terceiro para Pelé fazer o quase gol mais bonito da história, foram meus grandes momentos de heroísmo na Copa.

As memórias são do craque e cronista esportivo Tostão, na Folha de São Paulo.

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