terça-feira, 28 de abril de 2020

Haverá Carnaval


Na sequência da eleição de Jair Bolsonaro —candidato impensável—, da perda de conquistas sociais, do aumento da violência nas periferias, do plano econômico pífio, da pandemia, da saída do ministro Mandetta —único do governo a ser pró-quarentena— imaginávamos que o raio já havia caído vezes suficientes sobre nossas cabeças.
Mas eis que a saída de Moro —ministro-fetiche do bolsonarismo— aprofunda a crise. As frases que terminam com esse “aprofunda a crise” têm sido tão recorrentes que nos obrigam a perguntar se esse fosso tem alçapão.
Se soubéssemos de antemão algumas situações que a vida nos guardava, talvez não tivéssemos encarado muitas manhãs. E é porque não sabemos o que nos espera que temos a chance de renovar a aposta de que valerá a pena enfrentar o dia.
Diante do imponderável, é comum os sujeitos ficarem paralisados prevendo o pior. Mas o imponderável é jogo não decidido. Nem sobre o pior temos certeza ou, pelo menos, não sabemos se e como ele se apresentará. Garantida está a morte, mas, como se diz, não estaremos aqui para vê-la.
Como acordar todas as manhãs no exílio, sem saber quando poderemos ou se poderemos voltar ao nosso país? Ou de forma mais corriqueira, o dia a dia das mulheres enfurnadas em casa com seus bebês recém-nascidos, que parece eterno e enlouquecedor?
Alguém já falou que a pandemia é o puerpério do mundo. Se é, a pandemia em um país como Brasil, que incrementa a crise ao invés de enfrentá-la, é o puerpério no hospício. Como dizem Gil e Caetano “tudo demorando em ser tão ruim”.
Por isso, mais do que nunca, é importante lembrar que haverá Carnaval. Não sabemos quando, nem como, mas haverá Carnaval. E não qualquer um, pois ele será pleno de significados. Precioso como os momentos que reconhecemos não estarem garantidos de antemão, ou seja, todos os bons momentos.
Cada dia de insensatez nesse país tão sofrido tem seus instantes de delicadeza e graça.
Podem ser as gravações de Mônica Salmaso com convidados —mas também de inúmeros outros artistas— que nos ajudam a seguir, apesar dos ensandecidos de plantão.
“Se o mundo ficar pesado, eu vou pedir emprestado a palavra poesia” escreve Jonathan Silva no “Samba da Utopia”, lindamente executado e disponível no YouTube.
Pode ser a literatura que, se por um lado não rendeu tantos volumes lidos quanto os proativos esperavam, por outro, nunca decepciona no quesito alento.
“Somos um país de cidadãos não praticantes” escreve Valter Hugo Mãe no romance “A Máquina de Fazer Espanhóis”, confirmando que a palavra cria e revela a realidade que vivemos.
Podem ser os memes que nos arrancam gargalhadas à revelia, mostrando o chiste na sua dupla vertente —subversiva e de gozo— a sustentar nossa saúde psíquica.
Podem ser os sonhos formulados na leseira das horas que sobram entre o trabalho remunerado, o doméstico e os estudos.
Ir ao cinema, cortar o cabelo, ir ao parque, bater perna na feira da Vila Madalena, sentar em uma mesinha na calçada, andar na avenida Paulista, ir ao MIS, ao MAM, ao Masp, ao IMS, ao MAB..., a um restaurante, à Flip, almoçar com a família, cozinhar para amigos, tomar sol, ficar na sombra, tomar cerveja no boteco, brindar com muitos, ir a festas, a palestras, shows, ao teatro, dar as mãos, encontrar novos parceiros sexuais, cumprimentar com beijos, abraçar, casar, separar, ter um filho, sair da casa dos pais.
Ir aos velórios e enterros de nossos mortos. Não sabemos quando, não sabemos como, mas haja o que houver, haverá Carnaval. Não esqueça a fantasia.

Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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