sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Pobre de direita

Eu entendo você torcer o nariz para o rico de esquerda. “Então o cara mora num cinco quartos com pé-direito a perder de vista, de frente para a praça Vilaboim, e fica cagando regra sobre os direitos dos índios, dos mendigos e dos bandidos? Quero ver ele meter um menor infrator no sofá-cama da biblioteca.” Você me fala isso, e eu balanço a cabeça. Não gosto de você, não te convido para tomar kombucha em restaurante cabeça de Pinheiros, mas no fundo, lá no fundo, eu te entendo. A ignorância em mim saúda a ignorância em você. Até porque, talvez, apenas talvez, eu já tenha pensado assim.

Agora veja o caso de Estelita, empregada doméstica que trabalha para um casal morador do meu prédio. A “patroa” de Estelita comenta, no elevador, que a nova funcionária é “muito dócil, mas tem dias que dá trabalho”. Cogito lembrá-la de que Estelita não é um cachorro, mas para que dar continuidade a essa conversa horrorosa se posso simplesmente expor a vizinha escrota no jornal? Muito melhor! Diz também que Estelita veio cheia de “vontades”, porque “essas pessoas, depois do PT, ficam achando que têm mais direitos do que deveres”. Penso em pedir a essa criatura que se cale porque acabou o meu Vonau​ sublingual, mas, afortunadamente, alcançamos o andar térreo, e já posso respirar o ar podre de São Paulo. Qualquer fim de mundo é melhor do que essa senhora.  
Estelita é uma mulher cheia de graça e de charme. Usa piercing no nariz e exibe uma pequena constelação de estrelas na nuca. Tem um corpo com belas formas, ou seja: seria considerada gorda no shopping Cidade Jardim. Estelita, aos 14 anos, foi estuprada, a três quadras de casa. Aos 27 anos, quase morreu tentando abortar de um “casinho de dois dias” que bebeu todas e bateu em sua irmã mais nova. Aos 32, se casou, engravidou e, cansada de pagar sozinha as contas da casa e de sustentar vagabundo, pediu a separação. Apanhou na frente da filha.
Estelita, meus amigos, é de direita. E agora eu pergunto a você, a pessoa lá do primeiro parágrafo, que torce o nariz para o tiozinho que fuma charuto cubano enquanto ouve jazz e pede à cozinheira, que ele considera da família (mas faz trabalhar umas horinhas a mais sem pagar extra), que prepare algo leve para o jantar porque ele tem sofrido muito com gases. A cozinheira enfrenta uma úlcera há meses e perdeu o irmão com câncer recentemente. Mas os gases do tiozinho, ah, que problema! O tiozinho que estuda meios para que a nossa cultura não morra (porém, se for pagode ou funk, por Deus, que descanse em paz). Esse tiozinho, claro, tem defeitos. O aristocrata intelectual amigão dos desvalidos, óbvio, tem furos no discurso. A filha dele, feminista fervorosa, posso apostar, tem mais raiva quando o fiu-fiu vem do motoboy. Sim, você pode citar uma ou outra coisa real e relevante sobre a desonestidade cotidiana das boas e belas intenções. Mas, como eu dizia, agora eu pergunto a você: não o choca muito mais saber que Estelita é de direita? Não lhe parece infinitamente mais esquisito, maluco e triste que essa mulher, que tanto sofreu com o racismo, a pobreza, o machismo e a violência, defenda o partido (não apenas de direita, mas de extrema direita) dos preconceituosos, dos ricos, dos machões e das armas?
O tiozinho tem furos em seu discurso; Estelita tem furos em sua alma. Que façamos muitas crônicas para rir do tiozinho, mas, por ora, é urgente devolver a cada pessoa a exclusividade humana e tirar de suas costas o peso das massas (de manobra).

Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo.

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