quarta-feira, 1 de maio de 2019

Saudades das cavernas

O tempo é dos reacionários. Falo daquelas "mentes naufragadas", de que falava Mark Lilla no seu livro, e para as quais o presente em que vivemos é tão precário, tão imundo, tão cruel que o melhor é retornar ao passado.
Antigamente, dizem eles, tudo era mais simples, mais ordenado, mais perfeito. Como os revolucionários que tanto abominam, os reacionários são iguais a eles e podem estar à esquerda e à direita, entre ateus ou fervorosos crentes.
Podem ser ambientalistas radicais (não confundir com cientistas) que, seguindo uma criança sueca aparentemente perturbada (Greta Thunberg), defendem um retorno às cavernas para salvar o planeta.
Podem ser nacionalistas extremistas que desprezam a democracia pluralista e sonham com formas autoritárias de política.
Sem esquecer o pessoal das arábias, que procura recriar, pela força das bombas e das decapitações, um novo Califado.
É contra essa moda que se insurge o filósofo francês Michel Serres em ensaio recente. Serres, do alto dos seus quase 90 anos, publicou "Antes é que Era Bom!" (edição portuguesa pela Guerra & Paz), ensaio de uma ironia fina, no qual a autobiografia se mistura com a filosofia. Antes é que era bom?
Sem dúvida, escreve Serres. Para ficarmos apenas no século 20, esse tempo arcádico para onde os reacionários querem voltar, havia grandes estadistas, como Hitler ou Stálin, Mao ou Pol Pot.
E havia também paz, muita paz, ao contrário das barbáries de hoje. Como não recordar, com um sorriso nostálgico, os anos de 1914 ou 1939? Como esquecer os piqueniques em Hiroshima ou Nagasaki? Como não sonhar com os tempos felizes no Gulag ou em Auschwitz?
Mas Michel Serres não se fica pela grande história. A pequena também tem espaço nas suas meditações rezingas. Vejamos.
Antigamente, quando tudo era bom, vivia-se longamente até aos 35 ou 40 anos —e uma família tinha que ter cinco filhos, às vezes mais, na esperança de conservar dois.
Não havia problemas na previdência social porque, em rigor, não havia previdência social. Nem previdência social, nem água encanada, nem sistema de descarga, nem antibióticos, nem anestesia. Uma ida ao dentista era uma experiência deliciosa.
E se o leitor, indignado, acusa Michel Serres de não ser sensível às tribulações do presente —o ambiente, a condição da mulher, a alimentação artificial, as redes sociais—, o pobre filósofo não tem defesa possível para cada um desses males.
A revolução industrial ou o regime de semiescravidão em que viviam as mulheres não têm paralelo com a trágica situação atual.
Redes sociais? O mundo era sem dúvida melhor quando as comunicações duravam semanas (e não segundos) —e as viagens duravam meses (e não horas).
E sobre os produtos naturais que era possível consumir diretamente da origem, sem controle sanitário de qualquer espécie, Michel Serres, filho de agricultores, suspira: era diarreia em família seis vezes por ano! Que interessava a febre aftosa quando era possível beber leite acabado de mungir de uma vaca bucólica e enferma?
Eu sei, eu sei: nunca devemos confundir progresso material com progresso moral. Se, como dizem os hipocondríacos, a saúde é uma fase transitória que não augura nada de bom, o momento que vivemos no Ocidente, de relativo conforto e acalmia, um dia será recordado como um "intermezzo" na história da humanidade. E essa história, como alguém dizia, sempre foi a história dos crimes contra a humanidade.
Mas, por outro lado, como negar que esse "intermezzo" existe? E que, material e até moralmente, nunca estivemos tão bem --na longevidade, na alimentação, no trabalho, no lazer? E até na política, sim, sobretudo quando nos comparamos com os desgraçados fantasmas que cresceram e morreram às ordens de Lênin, Franco ou Ceausescu?
Os reacionários que enchem a boca com a história desconhecem-na grosseiramente. E eu, depois de ler Michel Serres, imagino como seria terapêutico construir uma Disneyland só para eles —um resort gigantesco onde, voluntariamente, os reacionários poderiam experimentar os prazeres do passado com que tanto sonham.
Viveriam 24 horas sob vigilância policial. Trabalhariam a terra com as mãos, ou com instrumentos tão rudimentares como as mãos, e não com as frescuras da tecnologia. Os cuidados de saúde estariam a cargo de um barbeiro —ou, então, de um médico especializado em sangrias ou lobotomias.
E as mulheres reacionárias, especialmente elas, viveriam submetidas aos caprichos dos pais, dos maridos, dos irmãos, sem direitos cívicos de qualquer espécie. Se estivessem em plena menopausa, era hospício para elas.
Ah, já me esquecia: a alimentação seria "autêntica". Como negar aos nostálgicos os prazeres de uma boa diarreia?

Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

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