quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O mundo está perdido: até a mudança faz o elogio da mesmice

O respeito às tradições, sempre defendido pelo pensamento conservador, seria mais simples se as tradições não fossem tão arbitrárias, contraditórias e passageiras.
Muita gente ainda acha que homem nasce homem, mulher nasce mulher e ponto final –qualquer mudança nesse programa é invencionice, coisa de quem defende a "ideologia de gênero" e pretende "ensinar o homossexualismo".
É curioso notar que, em tempos mais ordeiros, como a época vitoriana, havia o costume de tirar fotografia de garotos pequenos com roupinha de mulher.
Reconheço que terá sido mais uma moda que uma tradição, mas em todo caso a ideia deveria causar arrepios numa sociedade em que os papéis masculino e feminino se demarcavam com nitidez.
Imagino que a criança pequena (até uns dois ou três anos) fosse considerada mais ou menos sem sexo; o primeiro corte de cabelo, eliminando os clássicos cachinhos, talvez funcionasse como um ritual de passagem.
Com meu pai, nascido em 1915, fizeram um retrato desses, de vestidinho rendado. Ficava em cima de um aparador, logo na entrada de casa, sem que ninguém me explicasse aquele estranho travestismo infantil.
Não sei que consequências isso terá tido na história da minha sexualidade. Aquilo era o que era, e não se questionava demais a influência dos "maus exemplos" sobre a masculinidade, ou a falta dela, na psicologia de quem quer que seja.
Um problema do conservadorismo é o de idealizar os tempos antigos sem conhecê-los realmente. Defende-se a permanência de velhos costumes, mas isso é mais difícil do que se imagina.
É que os velhos costumes perdem uma coisa essencial quando se torna necessário defendê-los. Perdem a inocência que tinham. Existiam sem porquê.
Na medida em que se impõe uma argumentação, estúpida ou razoável, em sua defesa, o ambiente já foi, por assim dizer, "corrompido". Já está em curso o questionamento, a dúvida, a contestação.
Como consequência, o conservador fica em desvantagem desde o início. Passa a jogar segundo regras que não eram as da tradição. Pois a tradição, em seu vigor e eficácia plena, existia sem debate. Entrar no debate já é ser mais moderno do que se gostaria.
Progressistas ou conservadores, de todo modo, chegam muitas vezes atrasados. Modas, costumes e instituições parecem surgir e modificar-se como que sozinhas, debaixo de todos os narizes.
Desapareceu, assim, a coisa de vestir meninos com vestidinho de renda. Vai desaparecendo (espero) o sistema de vestir irmãos gêmeos com roupas iguais.
Sempre achei "perigosíssimo" esse costume. Se fosse pai num caso desses, tentaria sempre diferenciar ao máximo a Jéssica da Jennifer, o Paulo Mário do Mário Paulo, e o Gilbert do Dilbert.
Antigamente, parece que a semelhança dos gêmeos deveria ser mais celebrada do que vencida. A individualidade talvez contasse menos do que a mágica duplicação dos filhos sob a autoridade familiar.
Enquanto isso, tenho visto nestes dias de fim de ano –em que minha frequência aos shoppings se intensifica– um fenômeno paralelo: o das mães que parecem irmãs das filhas.
Por um lado, isso é bom. Significa que as mulheres de 40 anos ou mais estão com aparência cada vez mais jovem, graças à ciência cosmética e ao esporte. Tenho medo de que, ao mesmo tempo, as meninas estejam cada vez mais velhas, aparentando 20 anos quando têm apenas 11.
Nada é estável nesse campo; durante séculos, meninas de 14 ou 15 anos se casavam e viravam mães sem que ninguém se escandalizasse com a pedofilia.
É inegável, em todo caso, que o combate à pedofilia seja paralelo a uma crescente dissolução das diferenças de comportamento, informação e vestimenta entre quem tem 12 ou 30 anos.
Agora, vi em algumas vitrines de shopping um sinal de que as coisas vão longe demais. Agora há roupas idênticas à venda, para que mães e filhas pequenas saiam às ruas como as gêmeas de antigamente.
Será que está em curso uma ideologia excessivamente igualitária, pressupondo que mães e filhas sejam equivalentes em poder, em direitos e em autoridade? Não, isso seria insustentável.
Talvez o contrário: a mãe quer manter seus privilégios de filha, dizer-lhe "não chateia, vou brincar e dormir tarde", quando a criança impõe um mínimo de ordem e disciplina.
Ou então, quem sabe, as duas brincam de boneca –criando cada qual sua imagem duplicada. Um narcisismo recíproco, portanto. Senhores e senhoras, o mundo está perdido: até a mudança faz o elogio da mesmice. 

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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