sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Eterno

S. se interessa por um livro sobre a mesa. É a "Ascensão e Queda de Adão e Eva", de Stephen Greenblatt. A gravura de Albrecht Dürer do casal, na capa, chama a sua atenção. 
S. frequenta o culto pentecostal da cidade em que nasceu. É ali que namora, faz amigos e passa os domingos com a família. S. crê no que lhe diz o pastor, que Adão e Eva deram origem a todos os homens sobre a Terra. 
Quando lhe pergunto sobre a possibilidade de existir um ancestral comum ao homem e ao macaco, ela responde que conhece a teoria, mas que se guia pelo Evangelho e que a informação não consta dos versículos. 
Penso em presentear S. com um exemplar da obra de Greenblatt, e me pergunto se a moça se sentirá atraída pelo estudo das transformações sofridas por um mito que sobreviveu a Darwin, Newton e Galileu.
O que pensaria S. da presença de Noé no "Atrahasis" e em "Gilgamesh"? Que conclusões tiraria de Agostinho e Milton? Será que se ofenderia com o pterossauro de Twain e o humor demolidor de Voltaire? Ou, pelo contrário, descobriria um mundo outro, igualmente belo e respeitoso, mas diferente do que prega o pastor?
Tenho pensado muito nisso, num diálogo possível entre aquilo que me é caro e o novo cristianismo em ascensão no Brasil. Um cristianismo deveras monoteísta, que não admite sincretismos e enxerga o demo em Iemanjá.
Lutero e Calvino renegam até o politeísmo disfarçado dos santos católicos. Depois de 500 anos de Cristo, Oxalá e Tupã, não é tarefa fácil se acomodar à ortodoxia puritana.
Pragmático, o protestantismo celebra o progresso pessoal e conseguiu, nas últimas décadas, agir sobre o caos social, convertendo e organizando a vida dos que foram esquecidos pelo estado. 
O empenho evangélico ultrapassou a esfera religiosa, tornando-se uma força política. A última eleição não deixa dúvida, Deus se fez presente no palanque, pregando uma agenda conservadora, baseada na moral e nos bons costumes.
Os que preferem o risco ateu da ciência costumam tratar a fé como estupidez. Mas existe lógica na troca da liberdade da dúvida, pela certeza de um ente protetor.
Entre Eva e Lucy, S. escolhe Eva. A heroína do Gênesis enfrenta questões semelhantes às dela: amor, casamento, traição, responsabilidade, culpa, trabalho, doença e finitude. Lucy não, Lucy é puro acaso.
O romeno Mircea Eliade, grande estudioso das religiões, ensina que do paleolítico ao neolítico; dos megálitos à Cruz; de Marduk a Zeus; de Lao-Tsé a Confúcio; de Shiva a Buda; todas as crenças compartilham raízes comuns, sendo que as mais arcaicas sobrevivem ocultas em épocas posteriores.
A visão de Ezequiel, do vale coberto de esqueletos, é resquício da adoração dos ossos praticada nas cavernas. Os cultos ligados às plantas --como o da árvore do bem e do mal-- datam do início do período agrário, quando o homem dominou o milagre da morte e a ressurreição das sementes.
Por meio dos mitos, Eliade traça a genealogia da civilização indo-europeia. Lévi-Strauss faz algo parecido com os ameríndios em "Mitológicas".
Se esses autores se tornassem matéria obrigatória nas escolas, entenderíamos, desde cedo, que a história das ideias e das crenças religiosas se confunde com a da civilização, e não nos surpreenderíamos com o poder de Deus nas urnas.
Minha dúvida é se Eliade, Strauss e Greenblatt são considerados globalistas marxistas, traidores de Cristo e do Ocidente pelo futuro chanceler Ernesto Araújo. 
Se for esse o caso, aceito ser queimada na fogueira, com S. riscando o primeiro fósforo.

Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

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