quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Para ateu nenhum botar defeito

Mesmo quem não tem religião pode se interessar pelo engenho, pela imaginação e pela arte de alguns defensores do cristianismo.
Os esforços de um escritor como G. K. Chesterton (1874-1936), por exemplo, não se dirigem tanto para provar “a verdade” de alguns dogmas cristãos —como a virgindade de Maria ou a salvação das almas—, mas o seu “acerto”, do ponto de vista psicológico ou, talvez, humano.
É assim que, em “O Homem Eterno” (Ecclesiae, 2014) ele destaca a beleza, e a novidade, que há na ideia de um Deus tomando a forma de um bebê e nascendo de um casal refugiado, escondido numa caverna.
Para Chesterton, qualquer ateu que tenha vivido, na infância, a experiência do Natal sempre será sensível a um paradoxo imenso.
Irá associar na memória duas coisas absolutamente distintas: a ideia de uma criança indefesa e nua à concepção de uma força desconhecida, capaz de sustentar todas as estrelas. Mesmo perdendo a fé, não perderá o senso obscuro de que há algo de suave e de desprotegido por trás da menção ao nome assustador de Deus.
Há algo de incurável nisso, brinca Chesterton. Posso até achar melhor a ideia de um Deus que está em tudo, na eclosão milagrosa e diária das árvores, dos rios, do céu e das pessoas à minha volta.
Mas é como se, nesse Deus-Natureza que funciona como uma circunferência infinita, faltasse um centro. E o centro de uma circunferência infinita, diz Chesterton, tem de ser infinitamente pequeno.
Com a ideia de um Deus sem-teto, excluído, e até mesmo fora da lei, o cristianismo mudou tudo: “É uma profunda verdade dizer que, desse momento em diante, não era mais possível haver escravos no mundo”.
Lembro que também o judaísmo associa a noção de um povo eleito à de um povo escravo, que se liberta.
Talvez outras religiões tenham contribuições tão valiosas quanto essa; nenhuma deixou de trazer, igualmente, desastres totalmente evitáveis.
Desse ponto de vista, o ateísmo talvez não seja um “nada”, um vazio completo de crença e convicção, mas a depuração, a purificação, a salvação do que há de humano e de bom em qualquer fé religiosa.
Com isso, chego ao pensamento de outro autor, que declara convictamente que “Deus não é uma invenção”. Trata-se de René Girard(1923-2015), cuja obra vem sendo traduzida no Brasil pela editora 
É Realizações.
O autor de “A Violência e o Sagrado” conhece uma voga crescente em outros países, mas aqui a sua “teoria mimética”, aplicada fartamente na literatura e na antropologia, não parece ter muita divulgação.
Da longa bibliografia já disponível em português, leio um livro curto, escrito em colaboração com dois religiosos protestantes, Alain Houziaux e André Gounelle.
Estamos longe dos habituais confortos do catecismo. Provar a existência de Deus, diz Alain Houziaux, é quase irreligioso. “Um Deus que podemos provar é um Deus conforme a nossa lógica. Mas, se Deus existe, ele é certamente independente de nossa lógica e não pode ser provado.”
Se Deus existe, é “de graça”, sem explicação, simplesmente porque sim —como todo o Universo, aliás.
A audácia dessa teologia é enorme, e a meu ver praticamente anula o sentido de qualquer religião.
René Girard vai por outro caminho, atribuindo o fenômeno religioso ao que ele chama de “crise mimética”.
Ele acredita, sem me convencer, que o ser humano é marcado pelo desejo de ter o que o outro deseja; a rivalidade, a inveja, simplesmente destruiriam toda possibilidade de convívio social se não surgisse, de quando em quando, um “bode expiatório”.
Contra esse inimigo imaginário, todos se unem e podem purgar a inimizade que compartilham indiscriminadamente.
Pois bem, a novidade do  reside, para Girard, no fato de que Jesus foi ao mesmo tempo um bode expiatório —detestável e objeto de desprezo— e Deus. Sempre se destruiu o bode expiatório; agora é cultuado, enquanto tal.
Em outro texto, Girard tira dessa teoria, ou desse mito antropológico, uma conclusão escandalosa.
Ao revelar a brutalidade e o erro inerentes a toda religião —sempre, a seu ver, um sacrifício institucionalizado—, o cristianismo foi na verdade o destruidor das religiões. “A morte de Deus é um fenômeno cristão”, diz Girard. “No seu sentido moderno, o ateísmo é uma invenção cristã.”
Como ateu, depois dessa, só posso acrescentar que, seja como for, somos todos irmãos.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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