quinta-feira, 18 de maio de 2017

Não estamos sós

No fim de semana passado, passei o dia sozinho em casa, tomando notas que serviriam para uma espécie de livro de memórias.
No meio da manhã, fiz um café na cozinha e, por causa de um título no jornal, lembrei-me de que era Dia das Mães. Minha mãe morreu em 1994, minha avó, antes disso; de qualquer forma, o Dia das Mães, na Itália, é em outra data.
Não havia ninguém que eu quisesse ou precisasse festejar.
No momento de voltar para a sala, tive uma experiência bizarra. Por um curto instante, pareceu-me óbvio que minha mãe estava viva, e quis lhe dizer o que eu acabava de ler no jornal, que era o Dia das Mães, e eu chamei "mamma", em voz alta, no meio do corredor da minha casa. Minha própria voz me acordou, e voltei para os dias de hoje.
Não fiquei preocupado; apenas feliz ao constatar que, depois de tantos anos, ela está presente na minha vida. Não preciso acreditar em espíritos ou fantasmas para desejar que eles existam e se manifestem.
Somos 7 bilhões hoje na Terra. Desde o começo da humanidade, calcula-se que aqui viveram 107 bilhões de humanos. Há por volta de 15 mortos por cada vivo.
Não são tantos. E aposto que a presença deles melhoraria nossa vida e nossa convivência. Eles são nosso passado, a história que nos produziu, e nós somos o futuro deles, a razão de eles terem vivido.
No sábado antes do Dia das Mães, eu li, encantado, em poucas horas, "A Cena Interior", de Marcel Cohen (editora 34, tradução de S. Titan Jr.). O livro talvez seja responsável pelo episódio bizarro do domingo.
Num tom direto e simples, Marcel Cohen evoca seus mortos (dos que ele se lembra e dos que ele soube por outros). Todos sumiram no genocídio, e cada capítulo se abre com o nome da pessoa e o número e a data do comboio que a levou de Paris (a dos anos 1930 e 1940, tão parecida com a de hoje) para o extermínio.
Na capa, Jacques Cohen toca um violino; é o pai de Marcel, nascido em Istambul em 1902 e sumido no Comboio nº 59, em setembro de 1943.
Os mortos deixaram alguns objetos, o violino, um porta-ovo, uma pulseirinha de prata"¦ Eles funcionam como a madeleine de Proust: abrem a porta da memória.
A extraordinária força do livro está no fato de que não se trata de lembranças ou de saudades; o que importa não são os sentimentos de Marcel, que escreve, mas são eles, os mortos, com suas vidas, longas ou breves, que persistem nestas páginas, sem idealizações, numa grandeza feita de pequenos nadas.
Numa hora em que tento escrever sobre minha infância e meus antepassados também descubro que, para a ciência contemporânea, os antepassados não estão apenas nos porta-retratos. Explico.
As girafas têm pescoço comprido. Cinquenta anos antes de Darwin, para Lamarck, cada girafa, vendo que a comida estava no alto, estendia seu pescoço; com isso, os filhotes nasceriam de pescoço mais comprido. Com Darwin, o entendimento da evolução mudou de rumo: os esforços dos indivíduos girafas para alongar seu pescoço não passariam pelos genes, e as girafas têm pescoço comprido porque as de pescoço curto morreram de fome, enquanto sobreviveram e se reproduziram apenas as que, por acaso, eram mais pescoçudas.
Cresci darwiniano, acreditando que cada geração transmite para a seguinte o mesmo genoma que ela recebeu de seus pais etc. Mas hoje hoje já se descobriu que não é bem assim.
Sem alterar a sequência do DNA, variações adquiridas durante a vida de um indivíduo (a girafa que fez o esforço de alongar seu pescoço) podem chegar aos seus descendentes.
Essas variações são ditas epigenéticas porque acontecem nas proteínas que envolvem o DNA ("epí" significa em cima, em grego).
Em suma, nossos hábitos e nossa maneira de viver afetam as gerações futuras, e pelo genoma –não só por serem eventualmente transmitidas como lendas familiares.
Não sei se nosso legado epigenético inclui só os hábitos de nosso corpo (se você comer muito chocolate, fumar, beber e não fizer exercício, então seus filhos etc.). Talvez ele inclua também nossas covardias, nossa coragem, nossa estupidez.
Sempre pensei que o passado está dentro da gente –até o passado do qual preferiríamos não nos lembrar. Agora parece que nossos mortos estão presentes ao redor de cada um de nossos genes. E que nós estaremos, com eles, ao redor dos genes de nossos filhos e filhas. Responsabilidade, hein?


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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