No dia seguinte à eleição de Bolsonaro, muitos entre nós acordaram com uma ressaca moral que durou quatro anos. Ninguém anotou a placa do caminhão que nos atropelou com a notícia de que escolhemos o verdugo no lugar do professor.
Era doloroso demais ver o país no espelho representado por essa escolha. Uma eleição honesta, como têm sido todas as eleições pós-ditadura neste país, mostrou a verdadeira face do Brasil, majoritariamente autoritário e afeito a ignorar a própria história.
Numa desconfiança quase paranoica, nos perguntávamos quem na rua, na academia, na fila do supermercado estaria feliz e quem estaria contrariado com o desfecho da campanha. No consultório, o pânico era geral. De um lado, temiam os que esperavam que o presidente cumprisse as atrocidades prometidas nos palanques e entrevistas, de outro, os que imaginavam uma retaliação da oposição, receosos de uma guerra civil.
A esquerda, historicamente demonizada neste país, se calou diante da eloquência das urnas, revelando pendor democrático misturado com estupefação.
A urna eletrônica que elegeu Bolsonaro era a mesma que ele e seus comparsas insistiam em vilipendiar com a intenção de preparar o golpe, imitando o presidente que pensa que América é o nome do seu país, não de um continente. É esse megalomaníaco que serve de farol para a família B., sem escrúpulos de prejudicar uma nação inteira para fugir das consequências dos próprios atos.
A gestão indecente da pandemia, que atravessou boa parte do governo Bozo, foi crucial para que ele não fosse reeleito. A escalada autocrática a que assistimos na maior democracia do mundo nos dá uma boa noção do que nos esperava (espera?) caso seu desgoverno não revelasse tamanha incompetência. Mas é claro que esse projeto não aceita um não como resposta, porque foi feito para transformar cidadãos em súditos.
Nesta terça, 2 de setembro de 2025, o Brasil vai a julgamento. Sua memória, a frágil democracia, as mortes pela Covid que poderiam ter sido evitadas, a ascendência dos militares sobre o Executivo, a impunidade histórica. Tudo isso estará em questão pela primeira vez.
Mais do que julgar um governante desqualificado e seus comparsas pegos com a boca na botija, trata-se de voltar a olhar no espelho para saber se tivemos algum ganho de consciência depois de tanto padecimento. Porque a dor não ensina nada, só embrutece, salvo se nos dedicarmos a encontrar suas causas e enfrentá-las.
Assumir uma posição de resistência diante da ambiguidade nacional é o voto dos otimistas incorrigíveis.
Encontro-me nesse grupo, talvez porque já tenha visto grandes transformações na vida das pessoas comuns, talvez porque o nosso pessimismo é a matéria-prima da qual se alimentam nossos inimigos.
Em geral, é difícil dimensionar um acontecimento histórico enquanto o estamos vivendo. Mas não será simples naturalizar um evento de repercussões internacionais que pode representar o início de uma guinada contra as pretensões da extrema direita mundial.
De minha parte, espero acordar no dia 13 de setembro com a sensação de que venceu nossa versão mais digna.
Reprodução de texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo.
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