quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Anistia não é pacificação; é medo


Anistia é negação da justiça. Em graves violações de direitos humanos ou atentados contra a democracia, anistia não é pacificação, é medo. É o medo que a democracia tem, às vezes, de chamar tortura pelo nome, de chamar invasão do Parlamento de golpe, de chamar morte pela polícia de assassinato.

Guardadas as devidas proporções de cada momento histórico, a função que a anistia executa é a mesma: impunidade certeira.

Torturadores da ditadura não deveriam ter sido anistiados em 1979. Não estaríamos no imbróglio em que o bolsonarismo nos jogou se o time de Ustra e quem o aplaude estivessem na cadeia. A persistência da anistia de 1979 é ilegal porque viola compromissos internacionais do Brasil, apesar de o STF já ter decidido erroneamente sobre o tema. A anistia da ditadura não gerou pacificação alguma (a estrutura militarizada da polícia que o diga). A pacificação que a anistia de 1979 gerou foi o medo do Exército que temos.

Anistia, tampouco, não deveria ser aplicada aos crimes de maio de 2006, por meio da prescrição da indenização de vítimas mortas ou feridas por agentes do Estado. Enquanto a direita flerta com a anistia por golpe, nesta semana o STJ (Superior Tribunal de Justiça) debate se é favorável a outro golpe longe dos holofotes do noticiário: se o Estado e seus agentes devem ser punidos —de forma imprescritível, como são as violações de direitos— por executar civis. A pacificação que a anistia aos crimes de 2006 gera é o medo da polícia.

Anistia não deveria, por fim, ser aplicada em 2025 para conceder impunidade àqueles que buscaram reverter na marra o resultado das eleições e prender opositores. Colocar impunidade em termos de pacificação —como fez Tarcísio de Freitas— implica reencenar a velha prática brasileira de varrer a bomba do autoritarismo para baixo do tapete esperando que ela não exploda eventualmente.

A pacificação que a anistia de 2025 geraria será a certeza de impunidade por novos golpes. Anistia não foi uma boa ideia em 1979 ou em 2006 e não será em 2025.


Reprodução de texto de Thiago Amparo na Folha de São Paulo

No julgamento histórico do golpe, correm no esgoto da história planos de arruinar democracia


Enquanto se espera a sentença do julgamento do golpe, "histórico", continua a correr no esgoto da história o projeto de depredação da República. A extrema-direita e o centrão direitão conspiram para cancelar o Supremo por meio também da anistia. Mas a razia antidemocrática vai além.

A tentativa de reanimar o golpismo teria ganhado força também por meio da articulação política do governador de São PauloTarcísio de Freitas, que diz não confiar na Justiça. Recorde-se que entre os golpistas há integrantes de uma célula terrorista que planejava sequestrar ou assassinar Luiz Inácio Lula da Silva, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes. A célula chegou a ir às ruas a fim de pelo menos sequestrar Moraes.

Está difícil de discernir os interesses finais dos líderes do centrão direitão. Pretenderiam apenas ("apenas") trocar uma anistia parcial (sem cadeia) por uma retirada dos Bolsonaro da corrida. O objetivo seria arrumar a casa para 2026.

Quanto a Tarcísio, estaria apenas ("apenas") pagando pedágio para Jair Bolsonaro e beijando a mão do padrinho, preço para manter votos no eleitorado bolsonarista. Não é bem ou apenas isso. Tarcísio conversa inclusive com ministros do STF, além dos bolsonaristas.

De qualquer modo, a turma da anistia não se incomoda de dar aval para a transformação do Parlamento em casa de tolerância do golpe.

Diz-se que a anistia não passa no Senado. Que o STF a derruba, ao menos em 2026. Em 2027, poderia haver arranjo, a depender de quem for presidente da República e de quem tiver maioria no Senado, que pode "impichar" ministros do STF. No país de acordões, golpes e insurreição permanente da extrema-direita, convém não ficar confiante.

É fato que o projeto de anistia teve mais adesões. A massa parlamentar está irritada, o que facilita ideias de quebra-quebra institucional. O pagamento de emendas, aquém daquele do ano passado, afeta a massa do Congresso. Parece banal, mas é obviamente importante, basta ouvir anônimos parlamentares. Além disso, massa e seus cabeças se sentem inseguros. Querem votar emendas constitucionais ("PEC da blindagem") a fim de evitar polícia e Justiça. Querem mudança de foro; querem impedir processos e medidas judiciais que não sejam autorizados pelo Congresso, em votações secretas.

Além de se concederem imunidade, criariam incentivos para que o Parlamento se torne refúgio de bandidos candidatos à imunidade. No fundo, trata-se reação a uma década de decisões do STF. A motivação mais recente, que vem de 2024, é o receio de ser pilhado em roubança de emendas ou em lavagem de dinheiro. Líderes do centrão direitão acreditam que Lula mandou a Polícia Federal atrás deles.

Nesse clima de cobiça insatisfeita e medo, a cara de pau fica mais dura. Vicejou a ideia de cancelar a autonomia do Banco Central. Seus diretores ficariam sujeitos a demissão pela Câmara, sem motivos especificados. O motivo imediato seria fazer pressão no BC a fim de favorecer lobbies do negócio da venda do Banco Master para o BRB. Seja lá o que se pense da autonomia do BC, trata-se de projeto oportunista com cara de chantagem. Por falar nisso, os proponentes do monstrengo são adeptos de Tarcísio, o liberal e futuro condutor do "Ponte para o Futuro 2" (o plano de reformas de Michel Temer). Além de acreditar em Bolsonaro e de desacreditar a Justiça, o liberal Tarcísio apoia o sufoco do BC?


Reprodução de texto de Vinicius Torres Freire na Folha de São Paulo

terça-feira, 2 de setembro de 2025

O julgamento do Brasil


No dia seguinte à eleição de Bolsonaro, muitos entre nós acordaram com uma ressaca moral que durou quatro anos. Ninguém anotou a placa do caminhão que nos atropelou com a notícia de que escolhemos o verdugo no lugar do professor.

Era doloroso demais ver o país no espelho representado por essa escolha. Uma eleição honesta, como têm sido todas as eleições pós-ditadura neste país, mostrou a verdadeira face do Brasil, majoritariamente autoritário e afeito a ignorar a própria história.

Numa desconfiança quase paranoica, nos perguntávamos quem na rua, na academia, na fila do supermercado estaria feliz e quem estaria contrariado com o desfecho da campanha. No consultório, o pânico era geral. De um lado, temiam os que esperavam que o presidente cumprisse as atrocidades prometidas nos palanques e entrevistas, de outro, os que imaginavam uma retaliação da oposição, receosos de uma guerra civil.

A esquerda, historicamente demonizada neste país, se calou diante da eloquência das urnas, revelando pendor democrático misturado com estupefação.

A urna eletrônica que elegeu Bolsonaro era a mesma que ele e seus comparsas insistiam em vilipendiar com a intenção de preparar o golpe, imitando o presidente que pensa que América é o nome do seu país, não de um continente. É esse megalomaníaco que serve de farol para a família B., sem escrúpulos de prejudicar uma nação inteira para fugir das consequências dos próprios atos.

A gestão indecente da pandemia, que atravessou boa parte do governo Bozo, foi crucial para que ele não fosse reeleito. A escalada autocrática a que assistimos na maior democracia do mundo nos dá uma boa noção do que nos esperava (espera?) caso seu desgoverno não revelasse tamanha incompetência. Mas é claro que esse projeto não aceita um não como resposta, porque foi feito para transformar cidadãos em súditos.

Nesta terça, 2 de setembro de 2025, o Brasil vai a julgamento. Sua memória, a frágil democracia, as mortes pela Covid que poderiam ter sido evitadas, a ascendência dos militares sobre o Executivo, a impunidade histórica. Tudo isso estará em questão pela primeira vez.

Mais do que julgar um governante desqualificado e seus comparsas pegos com a boca na botija, trata-se de voltar a olhar no espelho para saber se tivemos algum ganho de consciência depois de tanto padecimento. Porque a dor não ensina nada, só embrutece, salvo se nos dedicarmos a encontrar suas causas e enfrentá-las.

Assumir uma posição de resistência diante da ambiguidade nacional é o voto dos otimistas incorrigíveis.

Encontro-me nesse grupo, talvez porque já tenha visto grandes transformações na vida das pessoas comuns, talvez porque o nosso pessimismo é a matéria-prima da qual se alimentam nossos inimigos.

Em geral, é difícil dimensionar um acontecimento histórico enquanto o estamos vivendo. Mas não será simples naturalizar um evento de repercussões internacionais que pode representar o início de uma guinada contra as pretensões da extrema direita mundial.

De minha parte, espero acordar no dia 13 de setembro com a sensação de que venceu nossa versão mais digna.


Reprodução de texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo

Luis Fernando Verissimo falava muito pouco, mas fazia o Brasil inteiro rir


Luis Fernando Verissimo surgiu no Caderno B do Jornal do Brasil ao mesmo tempo em que, nos Estados Unidos, Woody Allen, já famoso no cinema, se revelava como humorista pela New Yorker. O ano era 1974 e, para alguns, a identidade de estilos era óbvia.

Assim como Woody, Verissimo se punha na posição do observador que via o ridículo ou o absurdo com grande naturalidade. Também como Woody, ele não buscava a gargalhada, mas o riso silencioso. E seus personagens, assim como os de Woody, eram homens e mulheres nascidos não para, mas um contra o outro.

O texto era elegante e conciso, bem diferente do coloquialismo barroco de Nelson Rodrigues e da ferina objetividade de Millôr Fernandes, os dois cronistas mais ativos da época.

Mas Verissimo não devia nada a Woody Allen. A semelhança entre eles se dava por terem em comum as mesmas matrizes —os também americanos Robert Benchley, morto há 80 anos, e S. J. Perelman, que morreu em 1979.

Apesar de vigente nos Estados Unidos desde princípios do século 20, ninguém fazia esse humor no Brasil. Verissimo foi pioneiro —ele próprio se definia como um brasileiro que escrevia "em americano traduzido". Hoje, esse tipo de humor está presente, sem a mesma qualidade, na maioria dos que praticam a comédia stand-up por aqui.

Sem querer, e justamente por admirar o autor, atrasei em um ano a consagração de Verissimo. Em fins de 1975, o Jornal do Brasil criou a Domingo, a primeira revista semanal colorida dentro de um jornal, e seu editor-executivo —eu— quis Verissimo em suas páginas.

Com isso, ele deixou de publicar no jornal, de alcance nacional, e passou a sair só na revista, que, no começo, circulava apenas nos exemplares que se destinavam ao Rio de Janeiro. E assim, durante algum tempo, Verissimo foi um privilégio dos cariocas. Quando foi reincorporado ao jornal, o Brasil o descobriu —e se apaixonou.

Ele conseguiu a proeza de fazer o país rir com um personagem de forte sabor regional, o analista de Bagé. Outra de suas criações, a velhinha de Taubaté —a última pessoa no Brasil a continuar acreditando no regime militar— nos lavava semanalmente a alma. Minha favorita, no entanto, era uma que ele explorava pouco, a ravissante Dorinha Doravante, a socialite socialista, que escrevia ao cronista cartas deliciosamente cínicas.

Verissimo também desenhava (na minha opinião, muito bem) e construiu pequenas grandes sagas em quadrinhos.

A melhor delas, a da família Brasil, com aquele pai perplexo e sem chão, às voltas com a filha moderninha e com o genro hippie e parasita —um porta-voz de muitos de sua geração, que já não se reconheciam muito bem no mundo. Com seus toques de Jules Feiffer no desenho e Neil Simon nos diálogos, a família Brasil teria feito bonito em qualquer jornal do mundo.

Fomos colegas e contemporâneos no Jornal do Brasil, em O Estado de S. Paulo e na revista Playboy e, no decorrer de 40 anos, nos encontramos dezenas de vezes. Mas tudo que dissemos um para o outro, sobre jazz, futebol ou literatura, caberia numa única página.

Verissimo falava pouco. Eu o entendia —com a quantidade de material que tinha de escrever diariamente para jornais e revistas, falar devia parecer a ele uma queima de energia. E ele não abria mão da qualidade, como se pode ver em seus livros —em quase 100% saídos do que produzia para a imprensa.

Adepto de primeira hora do Partido dos Trabalhadores, Verissimo vinha sofrendo ultimamente com seu partido —assunto de que evitava tratar nas colunas. Sofria também cobranças, às vezes agressivas, dos que não pensavam como ele.

Esses agressores não entendiam que, com seu jeito único e intransferível de enxergar a fragilidade humana, Verissimo, na verdade, nunca pensou como ninguém.


Reprodução de texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo.