Ao fim das quatro horas e meia de "A Tristeza e a Piedade", Anthony Eden, o primeiro-ministro inglês, se recusa polidamente a julgar a atitude dos franceses frente aos nazistas: "Como não sofremos os horrores da ocupação, não temos esse direito". Compreende-se: não era de bom-tom notar que a França em peso havia colaborado com a barbárie.
A Pátria das Luzes adotou por livre vontade leis racistas mais depravadas que as da Alemanha. Campos de concentração brotaram na Terra dos Direitos Humanos por iniciativa de Paris, não de Berlim. A Filha da Igreja deportou 75 mil judeus para Auschwitz, e só 5% sobreviveram.
O que passou, passou: não dá para mudar a história. O que às vezes muda é a percepção do passado. Por isso "A Tristeza e a Piedade", de Marcel Ophuls, é um filme único: reconfigurou a imagem que um povo fazia de si, trincou o espelho no qual os franceses se admiravam.
Judeu, Ophuls nasceu na Alemanha, de onde sua família fugiu para Paris quando os nazistas avançaram. Escapou de novo anos depois, dessa vez dos colaboracionistas —os "colabôs"—, e se exilou em Hollywood.
Em 1968, filmou o documentário cujo subtítulo o resume: "Crônica de uma Cidade Francesa sob a Ocupação"; no caso, Clermont-Ferrand, burgo médio no meio do hexágono, súmula do modo de ver e viver da França profunda.
Entrevistou dezenas de testemunhas da Ocupação, de incontáveis profissões. A cabeleireira conta que amava Pétain. O oficial alemão reclama que os partisans não usavam uniforme. Gay, o espião inglês revela que namorou um soldado da Wehrmacht. O trabalhador torturado pela Gestapo sabe quem o delatou, mas não diz seu nome porque "seria se igualar a ele".
O campeão de ciclismo não se lembra de ter visto alemães em Clermont-Ferrand, e em seguida o farmacêutico recorda que "a cidade estava cheia de alemães de capacete". O aristocrata explica por que se alistou na SS: queria enfrentar comunistas no front soviético. O comerciante Marius Klein admite que publicou um anúncio classificado informando que era católico: "Não queria que pensassem que sou judeu".
Mendès-France, socialista, judeu e ex-primeiro-ministro, conta a fuga da cadeia. Depois de dias de ginástica —"eu não era esportivo"—, subiu no muro do presídio para pular na rua. Como um casal de namorados estava embaixo, esperou, esperou, esperou: "Ele tinha ideias precisas e ela não se decidia". Depois de muita conversa, a moça concordou. Mendès-France gostaria de os reencontrar, para comentar a "audácia" dele e a "indecisão" dela naquela noite tão especial para os três. Suspira: "O amor, a sorte, a fuga". É sublime.
Intercalados por trechos de cinejornais alemães e franceses, os depoimentos formam um mosaico. A trilha sonora desmente as imagens, e uma fala contradiz a anterior. Não há parti pris, mas fica cristalino que o grosso dos franceses não se importava. Fora da família, que se danem todos, pensavam. Por isso colaboraram com os boches.
Até então, vigia a versão de De Gaulle. Desde que se exilara em Londres, apregoava que Vichy era uma fraude e a França era ele. O Partido Comunista abonava a mentira porque apoiara o pacto Stálin-Hitler, e só veio se integrar à Resistência um ano depois da Ocupação.
O documentário afrontou a lenda. O diretor da estação de TV que financiara parte de "A Tristeza e a Piedade" contou a De Gaulle como era o filme. O comentário do general, nunca admitido nem desmentido, teria sido "A França não precisa de verdades, precisa de esperança".
Proibido na televisão, o filme passou no cinema em 1971, mas só no Saint-Séverin, no Quartier Latin. Todos os dias, 500 pessoas ficavam fora da sala, tal o afluxo. Depois de décadas de polêmicas e pesquisas —como as do historiador americano Robert Paxton no livro "Vichy France"—, o documentário se impôs.
Ele chegou à televisão só em 1981. Em 1995, o presidente Jacques Chirac admitiu o papel ignóbil da França nas torturas, deportações e assassinatos. Marcel Ophuls morreu no sábado passado (24). Tinha 97 anos.
Ele dizia não acreditar na culpa coletiva, e sim na responsabilidade individual. Ao dar a palavra a indivíduos –heróis, homicidas, cúmplices–, "A Tristeza e a Piedade" mudou o modo de encarar a Ocupação.
Não mudou a história porque, repita-se, o que passou, passou para sempre. Tampouco ele influi no presente: como reza o aforismo de Santayana, comprovado diariamente por Israel em Gaza, "aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo".
Reprodução de texto de Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo.