terça-feira, 22 de outubro de 2024

Sua majestade, o eleitor: ou por que votamos em tiranos?


Véspera de eleição e a pergunta que insiste é: por que galinha vota em raposa? Queremos entender por que mulheres votam em agressores e por que contribuintes entregam seus impostos a corruptos. Pergunta de um milhão de dólares que sociólogos, historiadores e psicólogos vêm tentando responder com mais afinco a partir da Primeira Guerra Mundial, momento no qual ficou claro que o ideal iluminista tinha saído pela culatra. Quanto mais o Ocidente se arvorava como a parte civilizada da humanidade, quanto mais apostava no controle dos impulsos pela força da razão, mais se afogava em sangue fratricida. O plano que supõe que a vontade dominaria nosso desejo ingovernável carece de ser combinado com os russos.

A contribuição psicanalítica nessa contenda é centenária, posto que o surgimento da psicanálise é contemporâneo da derrocada civilizatória ocidental. Embora nossa civilização, imperialista, escravocrata e feminicida, já fosse baseada no horror, a ficha só começa a cair quando a brutalidade é encenada dentro do velho continente. A imagem associada aos "selvagens" do sul global, que servia de antítese para os ideais racionalistas, empalidece diante da carnificina da Primeira Guerra Mundial.

Mas, afinal, por que seguimos líderes que nos prejudicam e nos fazem rumar em direção ao pior? Puxarei apenas um fio da meada dessa discussão, cuja complexidade não será contemplada aqui. Para Freud, a criança pequena vive a experiência primordial de se considerar "sua majestade, o bebê". Isso significa que há um momento no qual ela acredita ser o centro do universo. Estamos falando de como a fantasia onipotente serve para mascarar o desamparo inicial, com o qual a criança ainda não pode lidar. Mas se engana quem pensa que a constituição psíquica é feita de fases do desenvolvimento a serem alcançadas e superadas, como numa lista de supermercado à qual damos "check". Trata-se de um processo contínuo de reconhecimento de que somos seres desamparados, finitos e que, vez por outra, mesmo adultos, apelamos à miragem de um salvador, aquele que não estaria inteiramente constrangido pelos limites da realidade.

Políticos autoritários, por outro lado, ao encarnarem aspirações megalomaníacas, fazem valer na forma de privilégios ou do franco abuso de poder o lugar da majestade, que todos fantasiamos um dia ter vivido. E são esses que nos servem de modelo, acenando com a miragem de um trono sempre pronto a ser ocupado por um de nós. Os ideais igualitários, coletivistas, comunitários ferem de morte nossas aspirações delirantes de um dia reinarmos absolutos sobre os demais. Manter alguém ocupando o lugar de exceção é manter o próprio lugar de exceção como virtualmente acessível a nós.

A resistência do cidadão comum à taxação de grandes fortunas, por exemplo, que atingiria uma parcela ínfima da população, vai além da ignorância. Ela é tão irracional quanto as fantasias inconscientes que nos impulsionam, aquelas que os iluministas acreditavam poder controlar. As redes sociais manipulam e potencializam nossa megalomania infantil, criando efeitos coletivos até então inéditos. Domingo próximo é dia de eleição, o que não deixa de ser um tipo de psicodiagnóstico social.



Texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo.

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