sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Sinatra cantava o que sentia e o que bebia


O médico cuidava da mãe, evitando que morresse. O recém-nascido, com um rasgo no rosto —cortesia do fórceps—, estava roxo, sem respirar. A avó colocou-o na pia, debaixo de água gelada, e o ressuscitou. Foi quando Frank Sinatra soltou sua primeira nota, no dizer de Renzo Mora, em seu livro "Sinatra - O Homem e a Música".

O coração, que tantas fossas e dores de corno sofreu, encerrou as atividades para sempre em 1998. Sinatra tinha 82 anos e cordilheiras de fãs, agora órfãos do maior cantor popular de todos os tempos. Suas últimas palavras foram "Estou perdendo…" a vida.

Foi enterrado com uma de suas maiores companhias: uma garrafa de Jack Daniel's, sua bebida favorita, quase onipresente. Era ela que o aquecia quando estava por baixo, o que era frequente, nos intervalos entre momentos de euforia, festas, garotas bonitas e amigos leais.

Considerava-se o último dos cantores de bar (sallon singers). Não era para menos. O balcão fazia as vezes de confessionário e divã, quando não de um simples ombro amigo. Seu tema era essencialmente a solidão, mesmo quando obliquamente. De acordo com Pete Hamill, no livro "Why Sinatra Matters", suas baladas "são quase todas alimentadas pelo abandono, odes à garota que partiu. As canções mais rápidas recepcionam a garota que acabou de chegar".

Há basicamente dois tipos de cantores. O primeiro leva em conta principalmente a letra, sente as palavras, identifica-se, coloca sua experiência em cada sílaba. O segundo se importa mais com a musicalidade, com o som de cada partícula da letra. Billie Holiday e Sinatra —que deve muito a ela— são os exemplos clássicos do primeiro caso.

Muitas são as canções que Sinatra tomou para si, botou sua assinatura, tal a forma como interpretou as emoções ali contidas. E muitas estão encharcadas de uísque, champanhe, os mais diversos coquetéis. Ou do simples ato de beber… o que seja.

Como "Drinking Again". Em português, a letra começa mais ou menos assim: "Bebendo de novo/ E lembrando do tempo em que você me amava/ Tomando umas/ E desejando que você estivesse aqui".

O que estaria bebendo? Provavelmente Jack Daniel's com gelo e uma espirrada de água com gás. "Acho que qualquer coisa que te faça atravessar a noite é boa —seja uma oração, tranquilizantes ou uma garrafa de Jack Daniel's", costumava dizer.

Já em "You Go to my Head", outro hino de fossa, canta algo como "Você me sobe à cabeça/ e fica como um refrão a me assombrar/ e então você se põe a girar no meu cérebro/ como as bolhas de uma taça de champanhe". Quem terá sido essa? O furacão Ava Gardner, sua segunda mulher, é um bom palpite.

Sinatra faria 109 anos neste dia 12. Nada melhor do que brindar a ele com uma de suas canções, "Angel Eyes", que mostra bem seu lado, digamos, mafioso: para os amigos, tudo do melhor, para os inimigos, tudo do pior. Generoso e violento, Jekyll e Hyde. Diz assim: "Ei, bebam todos/ Peçam o que quiserem/ E divirtam-se, fiquem felizes/ As risadas e bebidas são por minha conta".

FRANKIE'S WAY (ou 3-2-1)

Três pedras de gelo

Dois dedos de Jack Daniel's

Uma espirrada de água com gás

Monte num copo old-fashioned. Se quiser, decore com um pedaço de casca de laranja.


Daniel de Mesquita Benevides na Folha de São Paulo - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/daniel-de-mesquita-benevides/2024/12/sinatra-cantava-o-que-sentia-e-o-que-bebia.shtml

sábado, 14 de dezembro de 2024

Reduzir a pobreza no Brasil não afeta a desigualdade


O dicionário diz que pobreza é falta, em especial, falta daquilo que é necessário à subsistência. Pobreza significa pouco, carência. Desigual, também segundo o dicionário, significa um estado de coisas que não são iguais entre si, é uma comparação.

Muitas são as memórias de fatias de bolos divididas desigualmente entre irmãos na infância. Enquanto pobreza é uma forma de se referir à escassez de algo, a desigualdade é uma forma de se referir à comparação de algo entre pessoas. Pobre é quem tem um pedaço pequeno do bolo, desigualdade é a comparação dos tamanhos dos pedaços entre as pessoas.

Internacionalmente falando, o bolo brasileiro está muito mal distribuído. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/2022, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil é um dos países de renda mais desigual do mundo: ocupa o 14º lugar e divide a posição com o Congo.

No entanto, quando se trata de países mais pobres, o Brasil não está listado pelo Banco Mundial entre as situações mais graves e que serão foco dos fundos internacionais de pobreza nos próximos anos. Não somos destaque internacional em pobreza, somos em desigualdade.

Essa realidade novamente apareceu na Síntese de Indicadores Sociais de 2023 do IBGE: a pobreza foi a menor já registrada na nossa história e a desigualdade ficou estagnada. Qual é a característica do Brasil que nos coloca nesta situação? De acordo com o World Development Indicators, os 20% mais pobres do Brasil detêm 4% da renda total do país, enquanto os 20% mais ricos detém 57%.

A anatomia da desigualdade do país é de alta concentração de renda entre os mais ricos. Portanto, mudanças na alocação de renda entre os mais pobres não reverberam facilmente na desigualdade brasileira por conta da altíssima concentração nos super-ricos. Isso quer dizer que a redução de pobreza irá afetar pouco ou nada a desigualdade, como ficou claro nos dados do IBGE de 2023.

Para afetar a desigualdade, é necessário mudar a alta concentração de riqueza entre poucos. Quais são as implicações para a política pública?

Primeiro, as estratégias de combate à pobreza e à desigualdade para o Brasil precisam ser absolutamente diferentes. Todo o esforço de combate à fome e pobreza de renda terão impacto pequeno sobre a desigualdade pois ela decorre da grande concentração nos mais ricos. Apesar de frustrante, é importante lembrar que existe uma vantagem. Considerando que os ricos geram arrecadação e não demandam política pública e os mais vulneráveis precisam de política social, ter ricos é bom. No cenário de ausência de ricos que geram arrecadação, a situação ficaria ainda mais complicada.

Segundo, considerando que o governo brasileiro arrecadou de fato, com mais ou menos justiça tributária, R$ 11 trilhões em 2023, um enorme bolo, nos falta gastar com qualidade em prol dos mais vulneráveis o que já temos. Há recurso suficiente não para reduzir como em 2023, mas para zerar a pobreza.

Não nos falta volume, nos falta gastar bem, nos falta qualidade do gasto. Por fim, apesar de ser uma vantagem, não existe combate à desigualdade sem repensar a tributação dos mais ricos no Brasil. No entanto, seria justo ter imediatamente uma qualidade de gasto mais adequada, arrecadar mais para gastar de maneira ineficiente não é o que queremos.


Reprodução de texto de Laura Müller Machado na Folha de São Paulo

Por que o Senado quer baratear armas?


Para o Senado, a prioridade absoluta no país nesta semana foi fazer com que armas e munições fiquem mais baratas para quem as compra e, consequentemente, para os criminosos para quem são desviadas. Excluídas do Imposto Seletivo na reforma tributária, passarão a usufruir de uma carga tributária reduzida.

Não é porque o governo Bolsonaro tenha acabado que o lobby armamentista terminou, pelo contrário: parlamentares pró-armas continuam acumulando vitórias, diante da apatia da gestão Lula.

A pressão pró-armas é uma pauta sectária: 72% da população discorda que a sociedade seria mais segura se as pessoas andassem armadas, segundo Datafolha de 2022; e pesquisa de 2023 revelou que expressivos 48% discordam total ou parcialmente com o direito a ter armas. A proposta do Senado revela parte da classe política mais preocupada em baratear armas que custam vários salários mínimos do que pensar se os brasileiros vão comer todos os dias. A Câmara, nesta mesma semana, votou por anistiar armas ilegais.

Por que, afinal, o Congresso Nacional quer baratear e facilitar o acesso a armas? Ao baratear armas, o Senado quer que mais mulheres sejam executadas por seus parceiros (43% dos autores de feminicídio cometidos com armas de fogo em 2022 no Brasil eram próximos às vítimas). Ao baratear armas, o Senado quer ajudar criminosos a ter acesso mais fácil a armas e munições (o crime se abastece, em sua maioria, de artefatos comprados legalmente, mostram os dados de armas apreendidas).

Ao baratear armas, o Senado quer que mais crianças sejam mortas de forma violenta (arma de fogo foi usada em 3 de cada 10 das mortes de crianças no país entre 2021 e 2023). Ao baratear armas, o Senado quer que mais pessoas negras sejam mortas (8 a cada 10 homens mortos por arma são negros no país).

Fora da realidade paralela do WhatsApp bolsonarista financiado por interesses privados armamentistas, o resultado do barateamento de armas no mundo real é: mais pobres mortos, mais mulheres violentadas e mais criminosos com acesso a armas.


Reprodução de texto de Thiago Amparo na Folha de São Paulo

Procuram-se os líderes que se vendiam como fiadores do ajuste fiscal no Congresso

 

Lideranças do Congresso Nacional passaram o ano de 2024 cobrando corte de gastos no lugar da agenda de aumento da arrecadação encabeçada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Foram meses e meses de discursos de parlamentares da oposição e do centrão pedindo ao governo Lula que mudasse a chave do ajuste fiscal com disparos de avisos histriônicos pedindo basta de aumento de impostos.

Por fim, o governo enviou ao Congresso um pacote com medidas para a redução do crescimento dos gastos. E o que os parlamentares fazem?

Trabalham para desidratar as medidas se aproveitando da correria que o governo impôs ao Congresso ao apresentar as medidas a menos de um mês do início do recesso parlamentar.

O ano legislativo foi de pouco trabalho, muita barganha por mais emendas parlamentares, atropelo no rito regimental das votações e jabutis de todos os tipos. Não poderia terminar diferente agora nas negociações do pacote.

Procuram-se as lideranças que há não muito tempo se colocavam como fiadoras da responsabilidade fiscal nos eventos megaexclusivos da Faria Lima e de apoiadores de reformas estruturantes dos gastos.

Sumiram.

Silêncio também dos prováveis novos presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Hugo Motta.

Os congressistas resistem ao ajuste porque, dizem, o ônus de medidas impopulares é do governo Lula. Entre eles, os que chamaram o pacote de tímido e insuficiente.

Querem flexibilizar até mesmo as medidas que têm apoio geral da população brasileira de restrição aos supersalários no funcionalismo público.

Afinal, não eram os congressistas que estavam pedindo a reforma administrativa? Não se pode nem chamar de reforma uma restrição para valer dos privilégios com a redução dos penduricalhos, mas seria um primeiro passo.

Não aguentam nem a pressão do Judiciário, que atua no bastidor para tirar a eficácia da medida.

Na verdade, não têm match para melhorar o pacote no Congresso. Se o PT, o partido do governo, não quer, por que o Congresso vai querer? É a justificativa apresentada.

O relator da PEC, deputado Moses Rodrigues (União Brasil-CE), em entrevista à Folha, deixou claro que não vai aumentar o impacto fiscal da proposta. Não pediu para ser relator, mas foi escolhido justamente para evitar atrasos na votação com a incorporação de medidas mais estruturantes.

Os negociadores técnicos do governo trabalham para evitar uma nova desidratação, além da que já ocorreu no Palácio do Planalto, quando Lula ouviu a política e deu sinal verde para um anúncio conjunto de corte de gastos, desoneração do Imposto de Renda e aumento de tributos para os milionários.

O presidente não ouviu os seus auxiliares da equipe econômica nem o futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, que foi chamado por ele a dar opinião em reunião na véspera do anúncio do pacote.

Após duas semanas da divulgação das medidas, Galípolo esteve junto dos demais diretores que votaram pelo tratamento de choque nos juros.

O dólar não cede. Já não se espera mais que a votação do pacote a jato seja capaz de garantir uma queda acentuada da cotação da moeda norte-americana para dar boas-vindas a 2025. Que barafunda.


Reprodução de texto de Adriana Fernandes na Folha de São Paulo

sábado, 7 de dezembro de 2024

O senhor da guerra


"Imagine um apocalipse. Você olha à direita, à esquerda, tudo que vê são edifícios destruídos, danificados por fogo, por mísseis, tudo. É Gaza, bem agora." Yuval Green, 26, reservista de Israel, atendeu ao chamado às armas no rastro do 7 de outubro, mas decidiu dar um basta e explicou seu motivo moral à BBC. Ele entendeu que a guerra já não é sobre reféns ou o Hamas. E, depois de contemplar o apocalipse, talvez algum colega tenha lhe contado: Netanyahu, o senhor da guerra, pretende ficar em Gaza.

O Corredor de Netzarim, com cerca de 7 km de comprimento e de largura, corta a Faixa de Gaza do Mediterrâneo à fronteira israelense, pouco ao sul da Cidade de Gaza. Imagens de satélite mostram que as forças de Israel destruíram centenas de edificações situadas ao longo do corredor, dando lugar a 19 bases e dezenas de postos militares. O senhor da guerra tem um plano para o pós-guerra: girar os ponteiros do relógio para antes de 2005, quando Israel retirou suas forças e seus assentamentos da Faixa de Gaza.

Há pouco, em setembro, uma coalizão de 57 países árabes e muçulmanos ofereceu uma paz sustentável. "Todos nós queremos garantir a segurança de Israel num contexto de encerramento da ocupação e permissão do surgimento de um Estado Palestino", esclareceu o ministro do Exterior jordaniano. Seriam três etapas: 1) fim da guerra e retorno dos reféns; 2) uma coalizão internacional hostil ao Hamas sustenta a instalação de um governo da Autoridade Palestina em Gaza; 3) Israel incorpora-se a um acordo regional de segurança destinado a conter o Irã.

O senhor da guerra ignorou a oferta. Por quê? A resposta certa não veio de algum ativista de esquerda que oculta seu antissemitismo na utopia do "Estado único binacional", mas de Moshe Yaalon, ministro da Defesa de Netanyahu entre 2013 e 2016: "O caminho pelo qual eles nos arrastam é de ocupar, anexar e promover limpeza étnica".

Netanyahu tem mais que as proverbiais sete vidas. A ofensiva contra o Hezbollah abriu-lhe um atalho de recuperação parcial de popularidade. O cessar-fogo no Líbano permite-lhe concentrar forças em "ocupar, anexar e promover limpeza étnica" em Gaza –mas também em impulsionar a agressão dos colonos contra a população palestina da Cisjordânia. O senhor da guerra nega oficialmente, mas persegue na prática a estratégia ditada pelos ministros supremacistas de seu gabinete. O triunfo de Trump só o encoraja a avançar na rota do desastre.

Um duplo desastre –para os palestinos, já, e para Israel, no horizonte histórico. Meses antes de morrer, em 2018, o escritor Amos Oz proferiu uma palestra seminal (shorturl.at/yruX8). Reiterou que nunca foi um pacifista, registrou o fracasso geral das experiências de Estados multinacionais e acendeu a luz de alerta.

Sem dois Estados, explicou, o que surgirá será um Estado árabe, "do rio até o mar". O intervalo até tal desenlace poderia ser preenchido por uma ditadura israelense sobre os palestinos ou terríveis violências ou uma etapa de apartheid. Mas a conclusão não mudaria –e os judeus retornariam à condição de minoria perseguida em terra estrangeira. No fim das contas, a demografia manda.

A alternativa encontra-se na proposta árabe de paz, aquela contra a qual o senhor da guerra conduz sua guerra.


Texto de Demétrio Magnoli na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Clarice Lispector confessou que meu mistério é não ter mistério


No livro "Clarice Lispector Entrevista", descobri alguns dos segredos da minha escritora favorita.

"Gosto de pedir entrevista –sou curiosa. E detesto dar entrevistas: elas me deformam. Há pouco tempo, sei lá por que, saí da minha linha e dei uma entrevista. Saiu boa. Mas não é que disseram que eu, enquanto escrevia, caía em transe... Lamento muito, mas sou um pouco mais saudável do que inventam. Meu mistério é não ter mistério. Tudo isso agora para dizer que espero nestas entrevistas não deformar as palavras dos meus entrevistados, palavras estas que são a persona de cada um."

Além das deliciosas conversas com os 83 entrevistados, o que mais me encantou no livro foi a oportunidade de mergulhar no mundo de Clarice.

Por exemplo, ela preferia fazer anotações à mão. "Fale mais devagar porque essa minha horrível mão queimada pelo incêndio escreve devagar", pediu a Vinicius de Moraes (Manchete, 12/10/1968). O poeta disse: "Tenho tanta ternura pela sua mão queimada". E Clarice registrou: "Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho".

Para o poeta Pablo Neruda (Jornal do Brasil, 12/4/1969), Clarice contou: "Sou uma tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me trazido também algumas recompensas".

Clarice confessou que era melancólica para Sarah Kubitschek (Manchete, 19/10/1968): "Como primeira-dama do Brasil que a senhora foi, precisava de um bom temperamento. O meu, para dar um exemplo, é cheio de altos e baixos, misturando um pouco de melancolia a muita atividade".

Ela perguntou ao psicanalista Hélio Pellegrino (Manchete, 9/7/1969): "Você quereria ter outras vidas? Era o meu sonho ter várias. Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escreveria, em outra eu só amaria".

Foi uma grande surpresa descobrir que tivemos um entrevistado em comum: Ivo Pitanguy (Manchete, 20/4/1969). Quando ela perguntou: "Qual é o seu hobby?", o cirurgião plástico, aos 46 anos, respondeu o mesmo que disse para mim quando tinha quase 90 anos: "Meu hobby verdadeiro é o meu trabalho".

Muitas vezes os papéis se inverteram. A escultora Maria Martins (Manchete, 21/12/1968) perguntou: "E você, Clarice, qual é a sua experiência de vida diplomática, você que é uma mulher inteligente?"

Clarice respondeu: "Não sou inteligente, sou sensível, Maria. E, respondendo à sua pergunta: eu me refugiei em escrever. Você conseguiu esculpir, eu consegui escrever. Qual o nosso mútuo milagre? Acho, eu mesma, que conseguimos devido a uma vocação bastante forte e a uma falta de medo de ser considerada ‘diferente’ no ambiente social diplomático".

A amiga continuou: "Clarice você é um monstro sagrado, e não há ninguém no Brasil incapaz de te ver tal como és: luminosa e triste". Clarice reagiu: "Uma das coisas que me deixam infeliz é essa história de monstro sagrado: os outros me temem à toa, e a gente termina se temendo a si própria. A verdade é que algumas pessoas criaram um mito em torno de mim, o que me atrapalha muito: afasta as pessoas e eu fico sozinha. Mas você sabe que sou de trato muito simples, mesmo que a alma seja complexa".

A escritora tímida ousada, que nunca quis ser um monstro sagrado nem um mito, revelou nas linhas e entrelinhas de Clarice Lispector Entrevista que: "eu sou mais forte do que eu".


Texto de Mirian Goldenberg na Folha de São Paulo.

domingo, 24 de novembro de 2024

Ainda estamos aqui, com terrorismo militar e a direita tosca que golpeia o país


O plano de golpe dos militares bolsonaristas foi "fanfarronada", disse o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice de Jair Bolsonaro e general de Exército. Bravata, coisa de quem fantasia ter força. O plano "Punhal Verde Amarelo", de matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes seria "sem pé nem cabeça".

Mourão acertou, sem querer. Tosco é o termo benigno para descrever o grupo. Um general de Brigada, Mario Fernandes, alto funcionário do Planalto, era líder operacional do bando e de parte da malta do 8 de Janeiro. Perambulava na noite do palácio para imprimir um "plano infalível" de golpe, como gênio burocrata do mal de filme "D" (não tinha fax?). Coronéis e majores parecem semiletrados, de baixa qualificação profissional e moral, gente vulgar, boca-suja, violenta e paranoica.

Parece, portanto, o governo Bolsonaro. Tosco e daninho.

Recorde-se a reunião ministerial de 22 de abril de 2020, aquela em que Bolsonaro exige que se meta a mão na polícia e na espionagem, para livrar a própria cara e a da família. São os mesmos sinais de despreparo, de perturbação psicológica, ressentimentos doentios, alguns violentos; são os mesmos modos desclassificados. Havia loucos ignaros. Por exemplo, Bolsonaro e parte de sua equipe econômica diziam que logo arrumariam R$ 1 trilhão, com o que as contas do governo e estabilidade estariam resolvidas.

Por falar em palhaçada grosseira e sinistra, houve Jânio Quadros (1961) e seu autogolpe frustrado. Houve o improviso, o cesarismo alucinado, o confisco e a roubança de Fernando Collor (1990-92), que deu calote na dívida pública, apoiado por empresários e liberais. A farsa tosca que termina em tragédia não é uma anomalia. É um padrão, um projeto recorrente.

A quadrilha do "Punhal Verde Amarelo" faz lembrar também do terrorismo militar dos anos 1950. Em fevereiro de 1956, dez dias depois da posse de Juscelino Kubitschek, o major Haroldo Veloso e o capitão José Lameirão, da FAB, roubaram um avião militar carregado de armas e tomaram cidades e vilas do sudoeste do Pará. Era a revolta de Jacareacanga. Esperavam provocar guerra civil e a derrubada de JK, que quase não tomara posse por causa da tentativa de golpe de UDN e militares, em 1955.

Pela "governabilidade", JK anistiou os golpistas ainda em março de 1956. Veloso voltaria ao terrorismo em 1959 (revolta de Aragarças). Vários deles participaram do terror e da tortura da ditadura de 1964. Era projeto antigo. Um golpe militar depusera Getúlio Vargas em 1954, mas GV revidou com o suicídio. O fracasso golpista ficou entalado na garganta até 1964.

O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, estava a caminho do generalato. No final do governo das trevas, foi nomeado para comando de tropa importante —Lula teve de demitir o comandante do Exército a fim evitar a armação.

Cid havia sido o nó central do golpismo, além de falsário, mentiroso, muambeiro etc. Ele e colegas estudaram "intervenção militar" na escola de pós-graduação do Exército (artigo 142 da Constituição). Mais um tosco e golpista no centro do poder.

O centrão e o direitão quase inteiro do Congresso se calam sobre o golpe, em parte ocupados com emendas, eleição de Câmara e Senado e porque querem evitar a discussão de 2026. Ou falam de "toscos". Serão cúmplices de um golpismo de longa história.


Reprodução de texto de Vinicius Torres Freire na Folha de São Paulo.

Bolsonarismo perdeu eleição e tentou matar quem venceu


Polícia Federal descobriu que o golpe dos bolsonaristas em 2022 incluía um plano de assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.

O plano foi elaborado pelo general Mário Fernandes, que trabalhava na Secretaria-Geral da Presidência. Segundo a PF, o plano foi impresso no Palácio do Planalto e apresentado ao Jair no Palácio da Alvorada. Dois dias antes, Bolsonaro havia apresentado a minuta do golpe aos chefes das Forças Armadas.

O plano previa o recrutamento de seis assassinos, para os quais deveriam ser providenciados seis telefones celulares novos. A polícia descobriu que, nos dias seguintes, seis militares, com celulares recém-comprados, seguiram Alexandre de Moraes. As mensagens dos golpistas mostram que o atentado foi abortado na última hora porque uma sessão do STF foi suspensa.

Isto é: não foi só planejamento. A execução começou, mas foi interrompida por motivos alheios à vontade dos criminosos.

Era tudo parte do mesmo movimento: Bolsonaro tentava convencer os chefes militares, os kids pretos planejavam os assassinatos, políticos bolsonaristas e acampados nas portas dos quartéis tentavam criar uma onda de apoio popular ao golpe. A investigação da PF mostra que o general Fernandes, autor do plano de assassinato, era um dos principais articuladores entre o Planalto, os acampados, os caminhoneiros e a turma do agronegócio.

Alguns analistas dizem que o golpe de Bolsonaro nunca teve chance de dar certo porque nunca contou com a rede de apoios que bancou o golpe de 64.

A diferença é mesmo notável: Bolsonaro acabara de ser derrotado nas urnas. Lula era um presidente eleito, não um vice que chegou ao poder porque o presidente renunciou. A mídia brasileira nunca apoiou Bolsonaro como apoiou os golpistas de 64. Os Estados Unidos desta vez se opuseram ao golpe.

Mas isso só quer dizer que, para o golpe bolsonarista dar certo, teria que ser muito mais violento que o de 1964.

É por isso que outras ditaduras sul-americanas foram mais violentas que a brasileira: porque enfrentaram mais oposição. Alguém duvida que Jair "não sou coveiro" Bolsonaro teria coragem de ordenar um banho de sangue?

Jango não resistiu ao golpe para evitar uma guerra civil. Jair tentou o golpe sabendo que começaria uma. Um coronel golpista citado pela PF diz claramente: "Vai dar uma guerra civil? Vai dar. Eu tenho certeza que vai dar".

De agora em diante, é isso: se você se aliar ao bolsonarismo, está se aliando aos bandidos que perderam a eleição e tentaram matar quem ganhou para dar início a uma guerra civil.

Quando você ler a manchete "Bolsonaro indicou vice de Nunes", ouça "Quadrilha que tentou matar Lula e Alckmin para começar guerra civil indicou vice de Nunes". Quando você ler "Tarcísio defende Bolsonaro", ouça "Tarcísio defende quadrilha de assassinos que perdeu eleição e tentou começar guerra civil".

Essa era a briga de Elon Musk: permitir que essa gente toda pudesse continuar conspirando em público para matar brasileiros.

É sempre possível que os assassinos do Jair consigam uma anistia com os ladrões do centrão. Mas uma coisa é certa: esse barulho que você ouviu na quinta-feira, quando a Polícia Federal indiciou Jair e seus cúmplices, era o som das instituições funcionando. Funcionando bonito.


Reprodução de texto de Celso Rocha de Barros na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

As instituições e o Prêmio Nobel


Acemoglu, Robinson e Johnson ganharam o Prêmio Nobel de Economia neste ano. Em 2001, eles explicaram o atraso dos países em relação aos países ricos com a tese de que os países que se atrasaram não foram colônias de povoamento como foram os Estados Unidos ou a Austrália. Estavam em parte corretos, porque essa foi a tese clássica de Caio Prado Júnior. Não discutirei aqui esse trabalho.

Em 2005, eles "descobriram" que o atraso dos países periféricos em relação aos países centrais poderia ser explicado pelo fato de suas instituições não terem garantido suficientemente a propriedade e os contratos e, assim, haverem desestimulado os empresários a investir. Estavam, neste caso, errados.

Afirmar a importância de boas instituições para o desenvolvimento é a mesma coisa que dizer que a água é importante. É óbvio que as instituições —as normas que organizam a vida social— são fundamentais.

A questão real não é essa, mas sim se faz sentido usar as instituições para explicar o atraso em vez de considerar as estruturas sociais, como eles fizeram sem saber no trabalho anterior. Elas nos dizem, no caso do atraso, se o país teve uma colonização de povoamento ou de exploração mercantil, como nos países latino-americanos.

Nos primeiros, formou-se logo uma classe média e a evolução para o capitalismo foi quase natural, enquanto nos países periféricos o caráter tradicional da sociedade e a condição colonial ou dependente se mantiveram por muito tempo; no caso da dependência, até agora. Nos dizem qual foi o peso do escravismo em cada sociedade.

O que os novos nóbeis de Economia —ou a escola novo-institucionalista à qual pertencem— subestimam é que as instituições são endógenas. Elas dependem das estruturas sociais; elas mudam conforme mudam essas estruturas.

A partir do livro de 1990 de Douglas North, "Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico", o institucionalismo se transformou em uma teoria de desenvolvimento. Surgiu, não por acaso, em torno de 1980.

Foi nesse momento que os Estados Unidos e os demais países ricos fizeram a "virada neoliberal" e perceberam que as instituições eram uma forma muito mais cômoda de explicar o atraso da periferia. Dessa maneira, a nova escola livrava-se não apenas de questões estruturais mais difíceis de mudar mas também do imperialismo ao qual os países periféricos foram e continuam sendo submetidos.

A tese novo-institucionalista da propriedade e dos contratos parece verdadeira à primeira vista, mas realmente não faz sentido.

Tomando-se como referência os primeiros anos do século 19: como seria possível comparar países em que a estrutura social era tradicional e a população em grande parte indígena ou descendente de escravos com a estrutura social de países como os Estados Unidos ou a Austrália?

Dar importância às instituições sem considerar as estruturas tornou mais fácil para o centro neoliberal definir o que os países periféricos deveriam fazer. Bastaria fazer as reformas institucionais —privatizar, desregular, liberalizar— e tudo seria resolvido.

Há ainda a considerar que em países de renda média é comum haver instituições mais modernas e adequadas do que nos países em desenvolvimento. Nós, por exemplo, temos a regulamentação dos medicamentos genéricos que poucos países ricos têm. Na Grã-Bretanha, a obtenção de documentos é mais demorada do que no Brasil. Nos Estados Unidos, o uso de armas de fogo é permitido senão incentivado.

Mudar as instituições é fácil, mudar as estruturas é mais difícil, e o país se livrar do imperialismo é mais difícil ainda. Muito mais fácil é realizar as reformas neoliberais, principalmente a completa liberalização comercial e financeira. O centro não quer o desenvolvimento da periferia; ele não quer que esta produza bens com mão de obra barata para com ele concorrer e quer manter a troca desigual entre manufaturas e commodities.

Sim, as instituições, assim como a água, são importantes. É impossível viver sem elas, mas assim como por trás da água estão as nascentes, por trás das instituições estão as estruturas econômicas e sociais.


Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira publicado na Folha de São Paulo

domingo, 3 de novembro de 2024

Vivemos uma epidemia de solidão


A cidade de Seul acaba de anunciar que vai investir US$ 327 milhões para combater a solidão. A capital sul-coreana é a mais nova integrante do clube de governos que estão combatendo isolamento social com política pública.

O dinheiro vai ser aplicado de várias formas. A cidade vai oferecer apoio psicológico gratuito para todos os residentes, além de um serviço emergencial chamado "Adeus, Solidão". Fez parceria com os aplicativos de delivery para identificar as pessoas que vivem sozinhas. Vai dar incentivos a quem participar de atividades sociais, incluindo visitar bibliotecas, festivais, parques e restaurantes.

Em Seul, as "mortes por solidão" têm crescido ano a ano. O fenômeno afeta principalmente homens (84% dos casos) na faixa dos 50 e 60 anos (50% dos casos).

Seul não está sozinha no problema. O Japão enfrenta há anos a crise dos "hikikomori", jovens que romperam vínculos e vivem isolados. Há 1,5 milhão deles, muitos vivendo no próprio quarto. O problema está em todas as idades. A onda agora são os "8050". A expressão se refere a pessoas reclusas na faixa dos 50 anos que dependem da ajuda dos pais de 80. Para combater tudo isso, o Japão tem criado centros de apoio, excursões turísticas para promover vínculos e até ajuda financeira supervisionada para reintegração social.

Quem leu até aqui pode achar que o problema é maior na Ásia. Nada disso. Em 2018, a Inglaterra criou o seu Ministério da Solidão (o nome oficial é Subsecretaria de Estado para a Solidão), que já teve quatro integrantes. A solidão cresce no país em todos os segmentos, especialmente entre 16 e 29 anos.

Nos EUA, o problema é similar. Em 2023, o cirurgião-geral (porta-voz do governo para saúde) anunciou com todas as letras que o país vive uma epidemia de solidão. Criou um plano para "reparar o tecido social", baseado na constatação que um a cada dois americanos alegam sofrer de isolamento social.

Para quem ainda não está convencido é só olhar para a OMS. Em 2023 a Organização Mundial de Saúde decretou a solidão como prioridade global de saúde. Criou inclusive a Comissão de Conexão Social para tratar o problema, com representantes de vários países como Chile, Japão, Suécia e EUA (o Brasil ficou de fora).

Os dados publicados pela OMS são chocantes. Em pesquisa global feita pelo Gallup em 142 países, uma a cada quatro pessoas enfrentam solidão severa e o mesmo número enfrenta solidão moderada. Curiosamente os menos solitários são os mais velhos (mais de 65 anos). Já os mais sozinhos são os jovens entre 19 e 29 anos. 27% deles com solidão severa e 30% moderada.

O dano da solidão acontece em várias camadas, físicas e mentais. Um estudo de 2022 apontou que o efeito de estar sozinho para a saúde equivale a fumar 15 cigarros por dia (o equivalente em nicotina a mascar 10 sachês de Zyn, a nova tendência do momento). O Brasil não está de fora. Pesquisa IPSOS de 2021 apontou que o país ocupava o 1º lugar entre entre os que mais sentem solidão. Está na hora de reparar o tecido social aqui também.

Reader

Já era – achar que solidão é problema pessoal

Já é – perceber que solidão é problema estrutural

Já vem – criar iniciativas públicas e privadas capazes de reforçar laços sociais


Reprodução de texto de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Pela última vez


O poeta Antonio Cicero foi à Academia Brasileira de Letras, da qual era membro, no dia 10 último. Naquela quinta-feira, subiu ao segundo andar do Petit Trianon, participou do chá informal que antecede a reunião e, quando esta se iniciou, sentou-se em seu lugar de sempre, entre mim e o historiador Arno Wehling. Como fazia havia algum tempo, assistiu em silêncio aos trabalhos. Ao contemplar as paredes centenárias, os funcionários da Academia e os confrades, por quem era muito estimado, sabia que aquela seria a última vez. Nós é que não imaginávamos que nunca mais o veríamos.

No dia 18, com seu companheiro há 40 anos, o figurinista Marcelo Pies, Cicero saiu de seu prédio na rua David Campista, no Humaitá. Tomaram um táxi para o Galeão, desembarcaram em Paris de manhã e Cicero foi a seus museus e livrarias favoritos na cidade que era também sua. Dois dias depois, partiram para Zurique, na Suíça, onde tinha um encontro com os médicos que o acompanhariam quando se autoadministrasse um remédio indutor do sono que, em meia hora, faria seu coração parar. Era a "morte assistida", o procedimento a que se decidira havia um ano, quando os exames determinaram que sofria da doença de Alzheimer.

Cicero não queria que o Alzheimer cumprisse seu terrível ciclo de perda da memória e, de repente, da razão. Chegara àquele estado fronteiriço, em que ainda se consegue perceber a proximidade da demência —e, por percebê-la a tempo, optou por derrotá-la, antecipando-se a ela. Em um mês ou dois, talvez essa percepção já não lhe fosse possível.

Em casa, antes de partir, qual terá sido o último livro que leu? E o último poema? Ao contemplar seus objetos, suas estantes, seu gato Homero, sabia que era uma despedida. O que terá sentido ao fechar a porta do apartamento, descer à rua e entrar naquele táxi que, no fundo, era um táxi para Zurique? E, depois, como ele acreditava, para o lugar nenhum.

Não sei. Só sei que seu gesto calou fundo entre nós, seus colegas da Academia, e nos fez admirá-lo ainda mais, agora por sua coerência. Afinal, um dia ele escrevera: "Eis o que torna esta vida sagrada:/ Ela é tudo, e o resto, nada."


Texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Sua majestade, o eleitor: ou por que votamos em tiranos?


Véspera de eleição e a pergunta que insiste é: por que galinha vota em raposa? Queremos entender por que mulheres votam em agressores e por que contribuintes entregam seus impostos a corruptos. Pergunta de um milhão de dólares que sociólogos, historiadores e psicólogos vêm tentando responder com mais afinco a partir da Primeira Guerra Mundial, momento no qual ficou claro que o ideal iluminista tinha saído pela culatra. Quanto mais o Ocidente se arvorava como a parte civilizada da humanidade, quanto mais apostava no controle dos impulsos pela força da razão, mais se afogava em sangue fratricida. O plano que supõe que a vontade dominaria nosso desejo ingovernável carece de ser combinado com os russos.

A contribuição psicanalítica nessa contenda é centenária, posto que o surgimento da psicanálise é contemporâneo da derrocada civilizatória ocidental. Embora nossa civilização, imperialista, escravocrata e feminicida, já fosse baseada no horror, a ficha só começa a cair quando a brutalidade é encenada dentro do velho continente. A imagem associada aos "selvagens" do sul global, que servia de antítese para os ideais racionalistas, empalidece diante da carnificina da Primeira Guerra Mundial.

Mas, afinal, por que seguimos líderes que nos prejudicam e nos fazem rumar em direção ao pior? Puxarei apenas um fio da meada dessa discussão, cuja complexidade não será contemplada aqui. Para Freud, a criança pequena vive a experiência primordial de se considerar "sua majestade, o bebê". Isso significa que há um momento no qual ela acredita ser o centro do universo. Estamos falando de como a fantasia onipotente serve para mascarar o desamparo inicial, com o qual a criança ainda não pode lidar. Mas se engana quem pensa que a constituição psíquica é feita de fases do desenvolvimento a serem alcançadas e superadas, como numa lista de supermercado à qual damos "check". Trata-se de um processo contínuo de reconhecimento de que somos seres desamparados, finitos e que, vez por outra, mesmo adultos, apelamos à miragem de um salvador, aquele que não estaria inteiramente constrangido pelos limites da realidade.

Políticos autoritários, por outro lado, ao encarnarem aspirações megalomaníacas, fazem valer na forma de privilégios ou do franco abuso de poder o lugar da majestade, que todos fantasiamos um dia ter vivido. E são esses que nos servem de modelo, acenando com a miragem de um trono sempre pronto a ser ocupado por um de nós. Os ideais igualitários, coletivistas, comunitários ferem de morte nossas aspirações delirantes de um dia reinarmos absolutos sobre os demais. Manter alguém ocupando o lugar de exceção é manter o próprio lugar de exceção como virtualmente acessível a nós.

A resistência do cidadão comum à taxação de grandes fortunas, por exemplo, que atingiria uma parcela ínfima da população, vai além da ignorância. Ela é tão irracional quanto as fantasias inconscientes que nos impulsionam, aquelas que os iluministas acreditavam poder controlar. As redes sociais manipulam e potencializam nossa megalomania infantil, criando efeitos coletivos até então inéditos. Domingo próximo é dia de eleição, o que não deixa de ser um tipo de psicodiagnóstico social.



Texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo.

De Gaza ao Líbano: um mundo de impunidade


Uma perturbadora erosão gradual e constante das normas universais do direito internacional tem ocorrido nas últimas décadas. Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil.

No mais grave e longevo desses conflitos, o Estado de Israel, à guisa de se defender do Hamas, em um ano destruiu na Faixa de Gaza todas as escolas, hospitais, universidades, mesquitas, igrejas, arquivos, museus. Cerca de 1,9 milhão de habitantes foram deslocados de suas casas. Quase 2% da população foi morta pelos bombardeios israelenses —60% dessas 42 mil vítimas são crianças, mulheres e idosos a partir de 60 anos.

No final do mês de setembro, a escalada de ataques, iniciada em 8 de outubro de 2023 entre Israel e o grupo não estatal armado libanês Hezbollah, se agravou. Em 27 de setembro último, sem aviso prévio, Israel lançou mais de 80 bombas de 2.000 libras num bairro no sul de Beirute, destruindo seis prédios de apartamentos e resultando na morte do secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Seguiram-se 1.700 bombardeios no Líbano, inclusive, recentemente, no centro de Beirute. No total, 1,2 milhão de pessoas foram deslocadas, 2.083 mortas e 10 mil feridas desde outubro passado, a maioria nas últimas três semanas. Israel atacou soldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil) sob protestos de 40 países, inclusive do Brasil.

Tudo antes da morte do líder do Hezbollah, considerada pelos EUA como "medida de justiça", parece ultrapassado. Mas, para as vítimas, o passado recente continua sendo o presente. Como foram as explosões em 17 e 18 de setembro no Líbano, e também na Síria, em pagers e walkie-talkies, atribuídas a Israel —visando o Hezbollah, mas que atingiram 3.500 libaneses, com 42 mortes. Perderam ambos os olhos 300 pessoas e, 500, uma das vistas. Houve registros de lesões graves na cintura e no rosto das vítimas, além de mãos amputadas.

Os ataques, a quem estava de posse dos dispositivos visados, violaram o direito internacional dos direitos humanos e humanitário, avaliou o alto-comissário de direitos humanos da ONU, Volker Turk. Apesar disso, as potências ocidentais que apoiam Israel não condenaram esses ataques. As reações da mídia internacional foram de um fascínio indecente, com o feito considerado "inovador" e "audacioso".

Era de se esperar que os ataques de Israel contra o Líbano gerassem protestos aqui, visto o Brasil ter a maior comunidade de libaneses e descendentes fora do país do Oriente Médio —entre 7 e 10 milhões de pessoas.

Ledo engano. Diante desses horrores, as entidades da sociedade civil brasileira não se manifestaram. Caladas durante um ano quanto ao genocídio em curso em Gaza —cuja plausibilidade foi constatada pela Corte Internacional de Justiça—, guardam um obsequioso silêncio sobre a desesperadora situação no Líbano.

Mas uma vez nos salva desse constrangimento internacional o governo brasileiro, que condenou com veemência os ataques aos pagers e denunciou as operações militares de Israel no sul do Líbano como violação ao direito internacional, à Carta da ONU e a resoluções do Conselho de Segurança.

Acontecimentos como os ocorridos em Gaza, no Líbano e em diferentes partes do mundo solapam a aplicabilidade universal de normas e mecanismos internacionais decisivos para a proteção das populações civis.

Urge que a sociedade civil brasileira se dê conta, como há dias disse António Guterres, secretário-geral da ONU, do "mundo de impunidade" que ameaça os fundamentos da lei internacional.


Reprodução de texto de Paulo Sérgio Pinheiro publicado na Folha de São Paulo

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O dom das lágrimas é uma reação espontânea diante da visão da graça


No final do romance "Diário de um Pároco de Província", de Georges Bernanos, da editora É Realizações, o personagem narrador, protagonista, um padre, no fim do seu suplício, diz, de forma aliviada: "Tudo é graça". Deus age no mundo através da graça.

Conceito de alta credencial na teologia cristã, objeto de polêmicas densas, envolvendo grandes figuras como Santo Agostinho, Pelágio (séculos 4º e 5º), o jesuíta Luís de Molina (século 16) e o filósofo Blaise Pascal (século 17), a graça pode ser compreendida como algo à disposição de todos, como no entendimento de que a criação é pura graça, ou, ao contrário, pode ser compreendida como algo restrito a alguns pouquíssimos eleitos que têm o dom sagrado de percebê-la à sua volta —incluindo aqueles que conseguem ver que a criação é pura graça.

A fala do protagonista do romance aqui citado pressupõe que tudo que existe é graça, mas, nem por isso, todo mundo —ele mesmo, há quem argumente, só percebe isso claramente no leito de morte— enxergaria a graça no mundo. Essa forma de compreensão é típica dos estudos de mística e espiritualidade. Aqui a percepção é rara e restrita.

Há algo de importante a acrescentar, antes de avançarmos numa das formas reconhecidas pela literatura especializada no assunto, e por pessoas que, aparentemente, apresentam um "sintoma" específico de quem foi tocado por esse dom da graça. Afinal, qual seria esse "sintoma de Deus"?

Seja para Santo Agostinho, seja para Pascal, o dom de ver a graça ou recebê-la, simplesmente, não implica mérito por parte de quem recebe o dom —questão que levanta fúria para muitos teólogos até hoje. Esse traço constitui um elemento surpresa para o "eleito". Essa surpresa significa que a pessoa que recebe o dom pode nem ser religiosa ou nem compreender de cara o que se passa com ela.

Nesse sentido, o teólogo jesuíta suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988), no seu livro dedicado às santas Teresa de Lisieux e Elisabeth de Dijon, "Schwestern im Geist", ou irmãs no espírito, descrevendo o que ele chama na obra de "teologia existencial", chama a atenção para uma fenomenologia da graça em que, num dos casos de sua manifestação na santidade, ela o faz de forma inesperada, um psicólogo diria "invasiva" —ele não diz isso—, o que leva o santo a ter de se ver com o fato de que a graça habitará sua vida e sua alma para sempre, "sem ter sido convidada".

Esse caráter da manifestação "não convidada" de Deus, aparece também na obra do filósofo judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972), quando ele diz que "Deus o persegue pelas ruas", até pelos cafés, como uma tempestade que de repente cai sobre ele e que, sob essa ação, ele parece adentrar um "antigo santuário" que pede silêncio absoluto.

O português é um idioma feliz para entender um traço definidor da graça: a graça é de graça —redundância necessária. A rigor, tudo o que Deus faz é de graça, na medida em que ele o faz sem qualquer condicionamento prévio: não faz porque precisa fazê-lo.

Não criou o homem e a mulher porque ele precisava de companhia na sua vida "vazia". Esse caráter não motivado por qualquer necessidade nas ações de Deus se constitui num dos grandes mistérios para quem busca entender a "personalidade" de Deus e suas "intenções" ao agir da forma que age. Deus é reconhecidamente imprevisível nas narrativas bíblicas e isso incomoda muita gente.

E qual é esse "sintoma de Deus" lembrado aqui? "Bem aventurados os que choram, porque serão consolados." Eis um fundamento bíblico do "dom das lágrimas" —"gratia lacrymarum" em latim medieval. Uma reação fisiológica espontânea e incontrolável em que a pessoa que possui esse dom chora copiosamente quando enxerga a graça no mundo, em meio a sua desgraça.

Não se trata de tristeza nem propriamente alegria, mas, sim, a percepção da beleza de Deus e sua doçura no mundo, percepção essa rara e para poucos. Essa beleza infinita dispara na pessoa que recebeu esse dom das lágrimas, contra sua vontade e sem propriamente entender o porquê, o choro sagrado.

Há uma vasta literatura sobre o tema. Destaco para os leitores de francês um dos melhores, "Le Don des Larmes au Moyen Âge", ou o dom das lágrimas na Idade Média, escrito pela historiadora Piroska Nagy.

As lágrimas podem vir diante do comportamento de uma pessoa que demonstra rara generosidade, diante de um cenário sublime da natureza, diante do silêncio de um "antigo santuário", como diz Heschel, enfim, diante de uma pessoa que não joga o jogo do mundo. Os tocados por esse "incômodo" dom, hoje, normalmente, aprendem a dissimulá-lo ao longo da sua vida.


Texto de Luiz Felipe Pondé na Folha de São Paulo