domingo, 4 de junho de 2023

Marco temporal é boçalidade explícita da Câmara de Deputados


Chegou a hora de a onça beber água. Com o marco temporal aprovado na câmara dos desqualificados, em breve o Brasil todo saberá se ainda existem juízes em Brasília e se o STF (Supremo Tribunal Federal) conseguirá lancetar o tumor maligno que gerou em 2008 no acórdão da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol.

O principal deflagrador da metástase hoje disseminada pelo corpo político foi o ministro Carlos Alberto Direito, já falecido. Que sua alma não se perca pelo sobrenome.

Relator da TI em Roraima, o ministro do STF inventou a tese do marco temporal. Ou seja, a noção de que o Estado só deve reconhecer terras indígenas (TIs) efetivamente ocupadas por etnias em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

A carta garante a povos indígenas, no seu artigo 231, "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Para não haver dúvidas, o parágrafo primeiro desenha:

"São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural".

Mais claro, impossível. O próprio Direito concedeu em seu voto: "Não há índio sem terra. Tudo o que ele é o é na terra e com a terra". Citou Darcy Ribeiro, veja só, e disse que "o índio é ontologicamente terrâneo. É um ser de sua terra. A posse da terra é essencial a sua sobrevivência".

O corolário: não tem pé nem cabeça limitar no tempo a ocupação permanente. A presença de um povo em determinado território só deixa de ser permanente em caso de migração (hipótese em que a lei maior reconheceria o direito à ocupação mais recente), extermínio ou fuga de violências e doenças.

Considere o caso dos panarás. O primeiro contato em 1973, por força da abertura da rodovia BR-163, levou a uma sequência de mortes por gripe e outras doenças levadas por não índios que reduziu a população de 400 para 70 pessoas.

O governo federal determinou então a remoção para o Parque Indígena do Xingu. Só em 1997 os panarás conseguiram recuperar o território antes ocupado, com a criação da TI que leva seu nome, na serra do Cachimbo, divisa de Mato Grosso com Pará. Hoje são sete aldeias e 705 habitantes.

Se em 1997 o marco temporal estivesse em vigor, como pretende agora a bancada rural-bolsonarista, eles não poderiam mais ter a terra demarcada e homologada. Deixariam de existir, segundo o critério paradoxal do ministro Direito.

O texto da Câmara não se limita a dificultar ou mesmo inviabilizar a demarcação de novas TIs. Os 283 deputados que inscreveram seus votos na história da ignomínia nacional pretendem ainda permitir revisão daquelas já homologadas em caso de "alteração de traços culturais" da comunidade.

Não demoraria para promotores, procuradores e magistrados conservadores saírem em defesa dos direitos de grileiros para reverter TIs, alegando que os índios dessa ou daquela terra usam celular e dirigem camionetes. Notas de repúdio não terão o poder de sustar esse genocídio 2.0.

Chegou a hora de a onça beber água. Ou o Supremo se põe do lado das vítimas da boçal e perene história colonial do Brasil, ou se alinha com seus próprios parentes, amigos e aliados na vanguarda do atraso que não mais se peja de ser racista.


Texto de Marcelo Leite, na Folha de São Paulo

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