sábado, 25 de junho de 2022

O dia em que o cenário desabou sobre Jorge Dória


Quando minha avó Memé me levou pro teatro, parecia uma ideia de jerico —ou, como dizíamos na época, um programa de índio, que era uma expressão que a gente usava pra designar programas que só mesmo o homem branco tinha saco pra fazer.

O programa era "O Avarento", com Jorge Dória. O ator octogenário estava seriíssimo no cartaz da peça. Não parecia comédia. Ao abrir das cortinas, os atores usavam perucas e roupas de época. Que tragédia, pensei.

Até que entra o Dória —e passa a desancar os colegas, um por um. "Você parece o feto de um sapo molhado." A plateia inteira ia abaixo. E eu também, tanto que lembro de várias falas. "Eu te odeio desde que você nasceu. Só não entendo por que é que você nunca gostou de mim." Minha avó tinha crises de riso. Aquele homem não parecia um ator. Parecia um ser humano em estado puro, e aquilo era hipnotizante.

Até que, do nada, no meio de um diálogo, uma parede do cenário desabou, deixando descoberta toda a coxia esquerda. Ao invés de interromper a peça, Dória começou a improvisar, entre crises de riso do elenco. Enquanto falava, chutava as paredes de compensado. Chamou a produtora pro palco. "Onde foi que vocês compraram isso? Na 25 de Março?"

A partir dali a peça descambou pra um texto hilário sobre as condições precárias do teatro no Brasil, sem que nunca saísse do mote principal —afinal a peça era "O Avarento", então vinha a calhar. Ao final, a plateia urrava como quem tinha visto um milagre, enquanto o elenco agradecia, sobre os destroços.

Nunca me esqueci daquela noite. Duvido que alguém tenha se esquecido. Como eu tive sorte, pensava, por ter visto a peça no dia fatídico em que o cenário caiu. Que bela metáfora pra profissão: o país desabando e os atores tendo que improvisar sobre os destroços.

Outro dia encontrei a atriz Glaucia Rodrigues, que interpretava Elisa na montagem, e perguntei se ela se lembrava da noite em que o cenário caiu. "Difícil dizer, o cenário caía toda noite." Demorei a entender. "Acho que o Doria pedia pro contrarregra derrubar a parede."

Primeiro fiquei decepcionado. Vivi uma fraude. Minha noite inesquecível tinha acontecido centenas de noites (a peça ficou em cartaz por cinco anos). Depois fiquei ainda mais grato ao Dória e àquele elenco que me enganou. Que delícia de profissão, essa, que consiste em fazer noites comuns parecerem únicas.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

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