terça-feira, 2 de março de 2021

A perda de um filho


Luto tem sido uma das palavras-chave do nosso momento. Engana-se quem pensa que falar do tema é só falar de dor e perda. Onde há luto, há amor e infinitas formas de lidarmos com a ausência do objeto amado. Uma vida sem luto não merece ser vivida, pois equivaleria à existência de um sujeito incapaz de estabelecer laços afetivos, incapaz de amar. Os pais que temem tanto o sofrimento dos filhos diante das perdas deveriam ter isso em mente: “no pain, no gain”, no jogo cujo nome é amor.

As perdas são atravessadas por circunstâncias sociais e pessoais, mas as dores humanas não podem ser comparadas, devendo ser contadas uma a uma.

Enrolei para ler “O Pai da Menina Morta” de Tiago Ferro (2017), cujo tema é dos maiores tabus da atualidade. Como diz em seu livro, ele se tornou o doente contagioso que ninguém queria encontrar, “o cara que se fodeu”, reduzido ao título que escolheu para sua obra. Um sujeito que quebrou o pacto impossível de proteger os filhos de tudo e de todos. Seu mergulho na perda irreparável engrandece a literatura, revelando que depois de muito trabalho, a dor que despedaçou seu corpo tornou-se tristeza, que deu margem à escrita que, por sua vez, fez laço social, cumprindo sua função última.

Nem todos terão a genialidade e a capacidade —que Freud chamou de sublimação— para transformar o insuportável em arte. Ao compartilhar sua experiência, Ferro explicita o processo corporal que o luto encerra. Algo se perde no próprio corpo, porque o amor confunde os corpos, e o sofrimento do objeto amado dói no peito do amante. “Amar é mudar a alma de casa”, dirá Mário Quintana. O erotismo permite juntar as partes desconectadas pelo sofrimento, mas deixa o sujeito perplexo diante da insistência do desejo. Como voltar a ser feliz, a desejar, diante da morte do outro? Seria uma traição? Mas é justamente por termos um amor que não encontra mais seu destinatário que a vida deve ser retomada, única homenagem a quem se foi: a vida segue porque o amor é doado a quem fica.

Christian Dunker, amigo querido e autor incontornável para pensarmos a psicanálise hoje, usa o termo luto infinito para falar do processo de lidar com a perda, que se nunca chega ao fim, tampouco impede que a vida siga seu curso com dignidade e entusiasmo.

Foi isso que tive a dolorosa oportunidade de testemunhar com minha mãe, que perdeu dois filhos jovens. Hoje, aos 93, se queixa dos perrengues da idade dizendo: “Acho que estou ficando velha”, com um sorriso. Frase inimaginável nos tempos que se seguiram à morte dos meus irmãos. Enquanto ela estiver viva, eles também o estarão em sua memória. Só ganha quem ama, só ama quem aguenta perder.

Finalizo com o livro que me foi gentilmente enviado por Luiz Schwarcz, no qual a dor transgeracional que o autor relata é apresentada da forma mais honesta possível. Ao tornar pública sua história —história de um homem conhecido e aclamado por uma trajetória de sucesso—, o autor cria uma belíssima e oportuna ocasião de discutirmos luto transgeracional, saúde mental, laço social e família, enfim, temas que o livro “O Ar Que Me Falta” (Companhia das Letras, 2021) é profícuo em desenvolver.

Se todos os lutos fossem produtivos assim —ainda que não criassem algo tão sublime como a arte— a vida seria infinitamente mais leve para toda a sociedade. Bem menos promissor é o luto das mortes anunciadas que, por ação ou omissão, nós brasileiros não paramos de contabilizar.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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