quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A noiva fantasma e a mulher sem rosto

Com histórias de fantasmas, a expectativa é que sejam pelo menos um pouco assustadoras. Mas isso nem sempre acontece no folclore japonês. Os espíritos dos mortos aparecem em lindos contos de amor da tradição oriental.
Veja-se a lenda de Hanagaki, um jovem poeta e estudante que, certo dia, compareceu a um festival que celebrava a reconstrução do Templo das Mulheres, na cidade de Kyoto.
O templo é famoso pelos jardins que o cercam. Num lugar afastado, existe um tanque onde se pode beber água —a “água do nascimento e da reencarnação”. O estudante estava sozinho ali quando reparou numa longa tira de papel colorido —um “tansaku”.
É nesses papéis compridos que se escrevem poemas, em sentido vertical. Hanagaki se encantou pela caligrafia do poema.
Melhor dizendo, apaixonou-se. Só podia ter sido obra de uma jovem extremamente sensível, graciosa, linda, pura, de alma boa.
Como encontrar a autora daquele escrito? Hangaki tinha esperança. “O tansaku” lhe fora trazido pelo vento; talvez os deuses o ajudassem. Foi rezar no templo de Benten, a deusa do amor.
Ouve passos. Uma jovem encantadora, aparentando ter 16 anos, aparece e se ajoelha no templo. Retira-se em seguida. 
O poeta, maravilhado a princípio, passou a se lamentar. Talvez jamais a visse de novo. Saiu do templo. Mal começou a caminhar pela rua, viu que uma moça andava na mesma direção. Era ela. Conversaram.
Hangaki confiou-lhe sua angústia. Ela sorriu: “Você não sabe que os deuses me enviaram para ser sua esposa?”.
Passam a viver juntos, sem criados nem testemunhas. A felicidade do casal é completa. Chega a primavera. 
Hangaki passeava por uma rua quando, na frente de uma casa rica, um criado o convoca. Um alto senhor queria falar com ele. Este se desculpa pela impolidez do chamado e explica seus motivos.
Tem uma filha belíssima. A deusa do amor lhe aparecera, dizendo que naquele dia exato passaria pela frente de sua casa o jovem que deveria esposá-la. Hangaki fica embaraçado. Não tem coragem de dizer que já vivia com uma mulher. É conduzido a um aposento. Uma moça o espera.
Surpresa: a jovem era a mesma que ele já tinha esposado! 
Quem era, então, a moça da caligrafia? A explicação é que era um espírito —o espírito da noiva verdadeira. 
Isso porque, algumas vezes, o poema é escrito com tanta paixão, com tanta verdade, que parte da alma se desprende da pessoa que o escreveu —e encarna no papel.
A esposa fantasma estava no “tansaku”. Agora, Hangaki se casaria de verdade.
O conto foi recolhido por Lafcadio Hearn (1850-1904), escritor irlandês nascido na Grécia, e conhecido no Japão pelo nome de Koizumi Yakumo. Ele é autor de uma vasta obra sobre os costumes japoneses.
Li a história de Hangaki numa velha tradução francesa (edições H. Piazza); não tenho em mãos “Kwaidan: Assombrações”, lançado no Brasil pela editora Claridade (2011).
É provável que algumas histórias recolhidas por Lafcadio Hearn sejam mais macabras do que essa que contei. 
A galeria Utópica (rua Rodésia, 26, Vila Madalena, São Paulo) apresenta até dia 5 de outubro “Kwaidan: Histórias de Coisas Estranhas”, série de fotografias em preto e branco de Hiroshi Watanabe, inspiradas nos relatos de Hearn.
Junto das imagens, legendas contam só o começo de cada história. 
Samurais tomam vinho ao pé de uma árvore: serão levados ao Reino das Formigas. Uma gueixa aparece de costas; vê-se apenas uma nesga branca de seu perfil. Trata-se da Mulher Sem Rosto. 
Um comedor de cadáveres. Uma longa defunta, iluminada por uma vela imóvel. Um arqueiro que matará, para sua desgraça, três patos mandarins num lago prateado.
Por vezes, as fotos de Watanabe parecem excessivamente literais. São bem posadas, e se a iluminação condiz admiravelmente com um senso de mistério, é provável que se inspirem sobretudo numa concepção “antropológica” da fotografia.
Tudo se passa como se fossem documentos que o próprio Lafcadio Hearn, em pleno século 19, tivesse conseguido para provar a veracidade das lendas que contou. 
Talvez estejamos diante de outra história de fantasmas: é o velho escritor quem assesta seu tripé, e com uma máquina antiquíssima, invoca um mundo morto, que ressurge em nitrato de prata, magnésio e sonho.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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