quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Sobre o cocô

O elemento grego “skatós”, excremento, serviu de base no século 19 para a criação de diversas palavras eruditas e científicas em português. Escatologia é a mais significativa delas.
Além de “tratado acerca dos excrementos”, o dicionário Houaiss (de onde saíram todas as definições deste texto) traz a acepção pela qual a escatologia é mais conhecida: “ato ou fato de referir excrementos e imundícies afins em anedotas, expressões, escritos etc.”
Ou seja, escatologia é o recurso simbólico a dejetos e outras secreções anti-higiênicas, traço marcante da retórica de Jair Bolsonaro.
As inclinações escatológicas do presidente têm sido externadas com tanta regularidade que dispensam o colunista de coletar amostras para análise.
Recorrendo a outro cultismo derivado do grego “skatós”, podemos afirmar que Bolsonaro é um presidente escatofônico, cultor do “uso de palavras tabus, especialmente fecais”. 
A montanha de referências a “excrementos e imundícies afins” (“goldenshower” incluído) acumulada nos últimos meses sugere até um caso de escatocrasia, “incontinência de fezes”.
É verdade que, como se diz na língua de Trump —e a própria eleição do ogro racista de penacho laranja comprova—, “shit happens”. É um lance que rola.
Parece claro, porém, que daria alívio ao ambiente já poluído pela fumaça das queimadas o contingenciamento sanitário de excreções verbais desse tipo. Quem sabe dia sim, dia não?
O que a fixação escatológica revela sobre uma pessoa é tema para os especialistas nos meandros da mente. No entanto, a língua oferece algumas pistas aos que se disponham a farejá-las.
Um pendor escatológico muito acentuado pode ser sintoma de coprofilia, que o dicionarista define como “interesse psicopatológico por fezes de um modo geral, e especialmente sua associação ao prazer sexual”.
Nos casos mais graves, a coprofilia pode incluir a escatofagia, sinônimo menos usado de coprofagia, ou seja, “prática de comer fezes”.
Para maior clareza no debate, é importante explicar que, embora a escatologia seja mais conhecida com o sentido acima, um clássico mal-entendido linguístico a ronda. Ela também pode ter significado teológico.
Na verdade, não se trata de uma acepção diferente para o mesmo vocábulo, mas de outra palavra inteiramente distinta com a mesma grafia e a mesma pronúncia.
A escatologia do vocabulário teológico quer dizer “doutrina ou teoria sobre o fim do mundo e da humanidade”; e ainda “qualquer das diversas doutrinas cristãs concernentes à segunda vinda de Cristo à Terra, à ressurreição dos mortos ou ao Juízo Final”.
Trata-se de uma palavra nascida também no século 19, mas o elemento grego em que ela se baseia não é “skatós” e sim “éskhatos” (extremo, último).
Esse tipo de homografia não é tão raro na língua. O caso mais conhecido é o de manga, uma palavra de origem latina (“manica”) quando é de camisa e outra, importada do malaio, quando é fruta. Ninguém se confunde com isso.
Ocorre que, sendo vocábulos muito menos corriqueiros do que manga e manga, a escatologia fecal e a escatologia apocalíptica representam uma casca de banana e tanto. Difícil encontrar na língua portuguesa pegadinha tão traiçoeira.
Os mais pessimistas já sustentam, porém, que a distância semântica está encurtando e que as duas escatologias logo vão se encontrar e se fundir no fim malcheiroso dos tempos. Só nos resta torcer para que estejam falando merda.

Texto de Sérgio Rodrigues, na Folha de São Paulo.

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