quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Clarice Lispector confessou que meu mistério é não ter mistério


No livro "Clarice Lispector Entrevista", descobri alguns dos segredos da minha escritora favorita.

"Gosto de pedir entrevista –sou curiosa. E detesto dar entrevistas: elas me deformam. Há pouco tempo, sei lá por que, saí da minha linha e dei uma entrevista. Saiu boa. Mas não é que disseram que eu, enquanto escrevia, caía em transe... Lamento muito, mas sou um pouco mais saudável do que inventam. Meu mistério é não ter mistério. Tudo isso agora para dizer que espero nestas entrevistas não deformar as palavras dos meus entrevistados, palavras estas que são a persona de cada um."

Além das deliciosas conversas com os 83 entrevistados, o que mais me encantou no livro foi a oportunidade de mergulhar no mundo de Clarice.

Por exemplo, ela preferia fazer anotações à mão. "Fale mais devagar porque essa minha horrível mão queimada pelo incêndio escreve devagar", pediu a Vinicius de Moraes (Manchete, 12/10/1968). O poeta disse: "Tenho tanta ternura pela sua mão queimada". E Clarice registrou: "Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho".

Para o poeta Pablo Neruda (Jornal do Brasil, 12/4/1969), Clarice contou: "Sou uma tímida ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me trazido também algumas recompensas".

Clarice confessou que era melancólica para Sarah Kubitschek (Manchete, 19/10/1968): "Como primeira-dama do Brasil que a senhora foi, precisava de um bom temperamento. O meu, para dar um exemplo, é cheio de altos e baixos, misturando um pouco de melancolia a muita atividade".

Ela perguntou ao psicanalista Hélio Pellegrino (Manchete, 9/7/1969): "Você quereria ter outras vidas? Era o meu sonho ter várias. Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escreveria, em outra eu só amaria".

Foi uma grande surpresa descobrir que tivemos um entrevistado em comum: Ivo Pitanguy (Manchete, 20/4/1969). Quando ela perguntou: "Qual é o seu hobby?", o cirurgião plástico, aos 46 anos, respondeu o mesmo que disse para mim quando tinha quase 90 anos: "Meu hobby verdadeiro é o meu trabalho".

Muitas vezes os papéis se inverteram. A escultora Maria Martins (Manchete, 21/12/1968) perguntou: "E você, Clarice, qual é a sua experiência de vida diplomática, você que é uma mulher inteligente?"

Clarice respondeu: "Não sou inteligente, sou sensível, Maria. E, respondendo à sua pergunta: eu me refugiei em escrever. Você conseguiu esculpir, eu consegui escrever. Qual o nosso mútuo milagre? Acho, eu mesma, que conseguimos devido a uma vocação bastante forte e a uma falta de medo de ser considerada ‘diferente’ no ambiente social diplomático".

A amiga continuou: "Clarice você é um monstro sagrado, e não há ninguém no Brasil incapaz de te ver tal como és: luminosa e triste". Clarice reagiu: "Uma das coisas que me deixam infeliz é essa história de monstro sagrado: os outros me temem à toa, e a gente termina se temendo a si própria. A verdade é que algumas pessoas criaram um mito em torno de mim, o que me atrapalha muito: afasta as pessoas e eu fico sozinha. Mas você sabe que sou de trato muito simples, mesmo que a alma seja complexa".

A escritora tímida ousada, que nunca quis ser um monstro sagrado nem um mito, revelou nas linhas e entrelinhas de Clarice Lispector Entrevista que: "eu sou mais forte do que eu".


Texto de Mirian Goldenberg na Folha de São Paulo.

domingo, 24 de novembro de 2024

Ainda estamos aqui, com terrorismo militar e a direita tosca que golpeia o país


O plano de golpe dos militares bolsonaristas foi "fanfarronada", disse o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice de Jair Bolsonaro e general de Exército. Bravata, coisa de quem fantasia ter força. O plano "Punhal Verde Amarelo", de matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes seria "sem pé nem cabeça".

Mourão acertou, sem querer. Tosco é o termo benigno para descrever o grupo. Um general de Brigada, Mario Fernandes, alto funcionário do Planalto, era líder operacional do bando e de parte da malta do 8 de Janeiro. Perambulava na noite do palácio para imprimir um "plano infalível" de golpe, como gênio burocrata do mal de filme "D" (não tinha fax?). Coronéis e majores parecem semiletrados, de baixa qualificação profissional e moral, gente vulgar, boca-suja, violenta e paranoica.

Parece, portanto, o governo Bolsonaro. Tosco e daninho.

Recorde-se a reunião ministerial de 22 de abril de 2020, aquela em que Bolsonaro exige que se meta a mão na polícia e na espionagem, para livrar a própria cara e a da família. São os mesmos sinais de despreparo, de perturbação psicológica, ressentimentos doentios, alguns violentos; são os mesmos modos desclassificados. Havia loucos ignaros. Por exemplo, Bolsonaro e parte de sua equipe econômica diziam que logo arrumariam R$ 1 trilhão, com o que as contas do governo e estabilidade estariam resolvidas.

Por falar em palhaçada grosseira e sinistra, houve Jânio Quadros (1961) e seu autogolpe frustrado. Houve o improviso, o cesarismo alucinado, o confisco e a roubança de Fernando Collor (1990-92), que deu calote na dívida pública, apoiado por empresários e liberais. A farsa tosca que termina em tragédia não é uma anomalia. É um padrão, um projeto recorrente.

A quadrilha do "Punhal Verde Amarelo" faz lembrar também do terrorismo militar dos anos 1950. Em fevereiro de 1956, dez dias depois da posse de Juscelino Kubitschek, o major Haroldo Veloso e o capitão José Lameirão, da FAB, roubaram um avião militar carregado de armas e tomaram cidades e vilas do sudoeste do Pará. Era a revolta de Jacareacanga. Esperavam provocar guerra civil e a derrubada de JK, que quase não tomara posse por causa da tentativa de golpe de UDN e militares, em 1955.

Pela "governabilidade", JK anistiou os golpistas ainda em março de 1956. Veloso voltaria ao terrorismo em 1959 (revolta de Aragarças). Vários deles participaram do terror e da tortura da ditadura de 1964. Era projeto antigo. Um golpe militar depusera Getúlio Vargas em 1954, mas GV revidou com o suicídio. O fracasso golpista ficou entalado na garganta até 1964.

O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, estava a caminho do generalato. No final do governo das trevas, foi nomeado para comando de tropa importante —Lula teve de demitir o comandante do Exército a fim evitar a armação.

Cid havia sido o nó central do golpismo, além de falsário, mentiroso, muambeiro etc. Ele e colegas estudaram "intervenção militar" na escola de pós-graduação do Exército (artigo 142 da Constituição). Mais um tosco e golpista no centro do poder.

O centrão e o direitão quase inteiro do Congresso se calam sobre o golpe, em parte ocupados com emendas, eleição de Câmara e Senado e porque querem evitar a discussão de 2026. Ou falam de "toscos". Serão cúmplices de um golpismo de longa história.


Reprodução de texto de Vinicius Torres Freire na Folha de São Paulo.

Bolsonarismo perdeu eleição e tentou matar quem venceu


Polícia Federal descobriu que o golpe dos bolsonaristas em 2022 incluía um plano de assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.

O plano foi elaborado pelo general Mário Fernandes, que trabalhava na Secretaria-Geral da Presidência. Segundo a PF, o plano foi impresso no Palácio do Planalto e apresentado ao Jair no Palácio da Alvorada. Dois dias antes, Bolsonaro havia apresentado a minuta do golpe aos chefes das Forças Armadas.

O plano previa o recrutamento de seis assassinos, para os quais deveriam ser providenciados seis telefones celulares novos. A polícia descobriu que, nos dias seguintes, seis militares, com celulares recém-comprados, seguiram Alexandre de Moraes. As mensagens dos golpistas mostram que o atentado foi abortado na última hora porque uma sessão do STF foi suspensa.

Isto é: não foi só planejamento. A execução começou, mas foi interrompida por motivos alheios à vontade dos criminosos.

Era tudo parte do mesmo movimento: Bolsonaro tentava convencer os chefes militares, os kids pretos planejavam os assassinatos, políticos bolsonaristas e acampados nas portas dos quartéis tentavam criar uma onda de apoio popular ao golpe. A investigação da PF mostra que o general Fernandes, autor do plano de assassinato, era um dos principais articuladores entre o Planalto, os acampados, os caminhoneiros e a turma do agronegócio.

Alguns analistas dizem que o golpe de Bolsonaro nunca teve chance de dar certo porque nunca contou com a rede de apoios que bancou o golpe de 64.

A diferença é mesmo notável: Bolsonaro acabara de ser derrotado nas urnas. Lula era um presidente eleito, não um vice que chegou ao poder porque o presidente renunciou. A mídia brasileira nunca apoiou Bolsonaro como apoiou os golpistas de 64. Os Estados Unidos desta vez se opuseram ao golpe.

Mas isso só quer dizer que, para o golpe bolsonarista dar certo, teria que ser muito mais violento que o de 1964.

É por isso que outras ditaduras sul-americanas foram mais violentas que a brasileira: porque enfrentaram mais oposição. Alguém duvida que Jair "não sou coveiro" Bolsonaro teria coragem de ordenar um banho de sangue?

Jango não resistiu ao golpe para evitar uma guerra civil. Jair tentou o golpe sabendo que começaria uma. Um coronel golpista citado pela PF diz claramente: "Vai dar uma guerra civil? Vai dar. Eu tenho certeza que vai dar".

De agora em diante, é isso: se você se aliar ao bolsonarismo, está se aliando aos bandidos que perderam a eleição e tentaram matar quem ganhou para dar início a uma guerra civil.

Quando você ler a manchete "Bolsonaro indicou vice de Nunes", ouça "Quadrilha que tentou matar Lula e Alckmin para começar guerra civil indicou vice de Nunes". Quando você ler "Tarcísio defende Bolsonaro", ouça "Tarcísio defende quadrilha de assassinos que perdeu eleição e tentou começar guerra civil".

Essa era a briga de Elon Musk: permitir que essa gente toda pudesse continuar conspirando em público para matar brasileiros.

É sempre possível que os assassinos do Jair consigam uma anistia com os ladrões do centrão. Mas uma coisa é certa: esse barulho que você ouviu na quinta-feira, quando a Polícia Federal indiciou Jair e seus cúmplices, era o som das instituições funcionando. Funcionando bonito.


Reprodução de texto de Celso Rocha de Barros na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

As instituições e o Prêmio Nobel


Acemoglu, Robinson e Johnson ganharam o Prêmio Nobel de Economia neste ano. Em 2001, eles explicaram o atraso dos países em relação aos países ricos com a tese de que os países que se atrasaram não foram colônias de povoamento como foram os Estados Unidos ou a Austrália. Estavam em parte corretos, porque essa foi a tese clássica de Caio Prado Júnior. Não discutirei aqui esse trabalho.

Em 2005, eles "descobriram" que o atraso dos países periféricos em relação aos países centrais poderia ser explicado pelo fato de suas instituições não terem garantido suficientemente a propriedade e os contratos e, assim, haverem desestimulado os empresários a investir. Estavam, neste caso, errados.

Afirmar a importância de boas instituições para o desenvolvimento é a mesma coisa que dizer que a água é importante. É óbvio que as instituições —as normas que organizam a vida social— são fundamentais.

A questão real não é essa, mas sim se faz sentido usar as instituições para explicar o atraso em vez de considerar as estruturas sociais, como eles fizeram sem saber no trabalho anterior. Elas nos dizem, no caso do atraso, se o país teve uma colonização de povoamento ou de exploração mercantil, como nos países latino-americanos.

Nos primeiros, formou-se logo uma classe média e a evolução para o capitalismo foi quase natural, enquanto nos países periféricos o caráter tradicional da sociedade e a condição colonial ou dependente se mantiveram por muito tempo; no caso da dependência, até agora. Nos dizem qual foi o peso do escravismo em cada sociedade.

O que os novos nóbeis de Economia —ou a escola novo-institucionalista à qual pertencem— subestimam é que as instituições são endógenas. Elas dependem das estruturas sociais; elas mudam conforme mudam essas estruturas.

A partir do livro de 1990 de Douglas North, "Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico", o institucionalismo se transformou em uma teoria de desenvolvimento. Surgiu, não por acaso, em torno de 1980.

Foi nesse momento que os Estados Unidos e os demais países ricos fizeram a "virada neoliberal" e perceberam que as instituições eram uma forma muito mais cômoda de explicar o atraso da periferia. Dessa maneira, a nova escola livrava-se não apenas de questões estruturais mais difíceis de mudar mas também do imperialismo ao qual os países periféricos foram e continuam sendo submetidos.

A tese novo-institucionalista da propriedade e dos contratos parece verdadeira à primeira vista, mas realmente não faz sentido.

Tomando-se como referência os primeiros anos do século 19: como seria possível comparar países em que a estrutura social era tradicional e a população em grande parte indígena ou descendente de escravos com a estrutura social de países como os Estados Unidos ou a Austrália?

Dar importância às instituições sem considerar as estruturas tornou mais fácil para o centro neoliberal definir o que os países periféricos deveriam fazer. Bastaria fazer as reformas institucionais —privatizar, desregular, liberalizar— e tudo seria resolvido.

Há ainda a considerar que em países de renda média é comum haver instituições mais modernas e adequadas do que nos países em desenvolvimento. Nós, por exemplo, temos a regulamentação dos medicamentos genéricos que poucos países ricos têm. Na Grã-Bretanha, a obtenção de documentos é mais demorada do que no Brasil. Nos Estados Unidos, o uso de armas de fogo é permitido senão incentivado.

Mudar as instituições é fácil, mudar as estruturas é mais difícil, e o país se livrar do imperialismo é mais difícil ainda. Muito mais fácil é realizar as reformas neoliberais, principalmente a completa liberalização comercial e financeira. O centro não quer o desenvolvimento da periferia; ele não quer que esta produza bens com mão de obra barata para com ele concorrer e quer manter a troca desigual entre manufaturas e commodities.

Sim, as instituições, assim como a água, são importantes. É impossível viver sem elas, mas assim como por trás da água estão as nascentes, por trás das instituições estão as estruturas econômicas e sociais.


Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira publicado na Folha de São Paulo

domingo, 3 de novembro de 2024

Vivemos uma epidemia de solidão


A cidade de Seul acaba de anunciar que vai investir US$ 327 milhões para combater a solidão. A capital sul-coreana é a mais nova integrante do clube de governos que estão combatendo isolamento social com política pública.

O dinheiro vai ser aplicado de várias formas. A cidade vai oferecer apoio psicológico gratuito para todos os residentes, além de um serviço emergencial chamado "Adeus, Solidão". Fez parceria com os aplicativos de delivery para identificar as pessoas que vivem sozinhas. Vai dar incentivos a quem participar de atividades sociais, incluindo visitar bibliotecas, festivais, parques e restaurantes.

Em Seul, as "mortes por solidão" têm crescido ano a ano. O fenômeno afeta principalmente homens (84% dos casos) na faixa dos 50 e 60 anos (50% dos casos).

Seul não está sozinha no problema. O Japão enfrenta há anos a crise dos "hikikomori", jovens que romperam vínculos e vivem isolados. Há 1,5 milhão deles, muitos vivendo no próprio quarto. O problema está em todas as idades. A onda agora são os "8050". A expressão se refere a pessoas reclusas na faixa dos 50 anos que dependem da ajuda dos pais de 80. Para combater tudo isso, o Japão tem criado centros de apoio, excursões turísticas para promover vínculos e até ajuda financeira supervisionada para reintegração social.

Quem leu até aqui pode achar que o problema é maior na Ásia. Nada disso. Em 2018, a Inglaterra criou o seu Ministério da Solidão (o nome oficial é Subsecretaria de Estado para a Solidão), que já teve quatro integrantes. A solidão cresce no país em todos os segmentos, especialmente entre 16 e 29 anos.

Nos EUA, o problema é similar. Em 2023, o cirurgião-geral (porta-voz do governo para saúde) anunciou com todas as letras que o país vive uma epidemia de solidão. Criou um plano para "reparar o tecido social", baseado na constatação que um a cada dois americanos alegam sofrer de isolamento social.

Para quem ainda não está convencido é só olhar para a OMS. Em 2023 a Organização Mundial de Saúde decretou a solidão como prioridade global de saúde. Criou inclusive a Comissão de Conexão Social para tratar o problema, com representantes de vários países como Chile, Japão, Suécia e EUA (o Brasil ficou de fora).

Os dados publicados pela OMS são chocantes. Em pesquisa global feita pelo Gallup em 142 países, uma a cada quatro pessoas enfrentam solidão severa e o mesmo número enfrenta solidão moderada. Curiosamente os menos solitários são os mais velhos (mais de 65 anos). Já os mais sozinhos são os jovens entre 19 e 29 anos. 27% deles com solidão severa e 30% moderada.

O dano da solidão acontece em várias camadas, físicas e mentais. Um estudo de 2022 apontou que o efeito de estar sozinho para a saúde equivale a fumar 15 cigarros por dia (o equivalente em nicotina a mascar 10 sachês de Zyn, a nova tendência do momento). O Brasil não está de fora. Pesquisa IPSOS de 2021 apontou que o país ocupava o 1º lugar entre entre os que mais sentem solidão. Está na hora de reparar o tecido social aqui também.

Reader

Já era – achar que solidão é problema pessoal

Já é – perceber que solidão é problema estrutural

Já vem – criar iniciativas públicas e privadas capazes de reforçar laços sociais


Reprodução de texto de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo.