domingo, 23 de junho de 2024

Juízes estimulam ações impróprias das PMs


Em outubro do ano passado, o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, representando a Associação de Delegados do Estado de São Paulo, pediu ao corregedor nacional de Justiça que recomendasse aos magistrados o respeito ao dispositivo constitucional que delimitou as jurisdições das polícias civis e militares.

O artigo 144 da Constituição é claro:

"Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares."

"Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de
defesa civil".

Contam-se às centenas os casos em que magistrados deferem pedidos de busca e apreensão solicitados pelas polícias militares. Mariz de Oliveira é um respeitado criminalista e já foi secretário da Segurança de São Paulo (1990-1991). Conhece de cor e salteado os dois lados do balcão.

O que ele pede é que o Conselho Nacional de Justiça recomende aos magistrados que não defiram pedidos encaminhados pelas PMs invadindo a competência das polícias civis.

A questão foi remetida ao Tribunal de Justiça de São Paulo e, em maio passado, seu corregedor respondeu que "em situações de urgência específicas" os magistrados podem deferir pedidos de buscas e apreensões solicitados pela Polícia Militar, sempre apoiados pelos representantes do Ministério Público.

É o jogo jogado, desde que se defina o que vem a ser uma "situação de urgência específica". As estatísticas indicam que as palavras "urgência" e "específica" são sinônimos de negro e pobre.

Indo ao coração do problema, o juiz Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi, auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça, informou, num parecer em que repisou a clareza da Constituição:

"Pesquisa recente realizada pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), a partir da análise de dados da região metropolitana do Rio de Janeiro, informa que é no cumprimento de mandados de busca e apreensão, ao lado da repressão ao tráfico de drogas e armas, retaliações por mortes ou ataque a unidade policial, recuperação de bens roubados, entre outras, que pavimentam as operações policiais que resultam em chacinas.

Ou seja, mandados de busca mal realizados e executados tornam-se instrumento e tipo de circunstância que necessariamente antecede ou desencadeia massacres, violações, abusos de todas a ordens e têm levado o país, inclusive, a condenações em cortes internacionais."

Lanfredi concluiu propondo que o corregedor Luiz Felipe Salomão recomende aos magistrados "que se abstenham de proferir decisões de deferimento de pedidos de busca e apreensão domiciliar ou de outros atos privativos de polícia judiciária e investigativa requeridos diretamente pela Polícia Militar".

Uma decisão final ainda deverá esperar novos pareceres e será votada pelo plenário do Conselho Nacional de Justiça antes que o pedido de Mariz complete um ano.


Texto de Elio Gaspari na Folha de São Paulo.

Negacionistas veem colapso climático como oportunidade de negócios


Eu falei para vocês no mês passado que iria sempre trazer aqui algum personagem para vocalizar a mensagem da vez. Convoco hoje David Wallace-Wells, um jornalista que nasceu em Nova York e que não se considera um ambientalista, mas mesmo assim é o autor de "A Terra Inabitável: uma História do Futuro" (Companhia das Letras), que reúne alguns dos mais impactantes ensaios sobre o colapso climático que estamos vivendo.

Quando recebi meu exemplar do livro de David, em 2019, mesmo ano em que publiquei "Ideias para Adiar o Fim do Mundo", fiquei com uma dezena de trailers para possíveis "fins de mundo" passando na cabeça. Compreendi, então, que cada artigo de "A Terra Inabitável" nos apresenta um cenário possível —e mesmo provável— de fim de mundo.

As tantas hipóteses do livro são todas advindas de pesquisas feitas pelo autor e também resultado de suas conversas com cientistas do clima —essa novíssima casta de cientistas que ocupou nos anos 1980 e 1990 o debate "mais quente" sobre o estado de destruição dos diversos ecossistemas terrestres— buscando saídas para o pior cenário, visto que já havíamos cruzado a linha que divide a restauração de diversos ecossistemas para o estágio da mitigação de danos.

"A Terra Inabitável" nos mostra dezenas de cenários, todos apresentando riscos de desaparecimento de milhares de espécies não humanas, desordem social e crescente risco de conflitos de alcance global, com perdas irreparáveis para povos e nações.

Os cientistas que informam a pesquisa de David Wallace-Wells apontam várias tentativas de "mitigar a situação de caos ecológico previsto para a primeira metade do século 21", todas de elevado custo material e humano pela exigência de investimento em tecnologias inacessível aos pobres países periféricos.

Um dos ensaios mais distópicos é aquele em que cientistas desenvolvem um aparato bélico, capaz de bombardear a atmosfera do planeta para provocar a transformação do carbono que satura nosso clima terrestre, visando encerrar os eventos cíclicos e extremos de calor intenso e tempestades de água e gelo —catástrofes capazes de afundar sob as águas cidades inteiras, como Porto Alegre mostrou recentemente ao mundo.

Mesmo assim, alguns negacionistas, também no campo das ciências do clima, ainda são capazes de tomar essa tragédia planetária como oportunidade para grandes negócios. Eliminar o efeito estufa com bombardeios na atmosfera, por exemplo, se insere na lista de negócios do futuro, enquanto anúncios de viagens espaciais se confundem com filmes da década de 1960 em que os Jetsons rodopiam pelo espaço aéreo terrestre enquanto não colonizam outros planetas.

Queridas leitoras e leitores, trata-se de um vale tudo entre especulação científico-tecnológica e guerra nas estrelas nesta única economia que parece validada no planeta, o manjado e velho capitalismo sob nova direção: o Capitaloceno.


Texto de Airton Krenak na Folha de São Paulo

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Como uma empresa dos EUA moldou imagem pejorativa da América Latina


Houve um tempo em que a United Fruit Company decidia quem morria e quem vivia nas duras vidas que seus trabalhadores enfrentavam nas plantações de frutas na América Latina. Horários de trabalho desregulados, jornadas extenuantes, condições insalubres. Um tempo em que juízes e políticos eram comprados para defender os interesses da empresa em vários países.

A UFC punha e tirava caudilhos do comando dos países cujos mercados queria dominar. Quando havia revoltas de trabalhadores, a empresa intervinha ao lado dos governos para que suas forças de segurança contivessem, muitas vezes com violência, os protestos por melhores salários e condições de vida.

Assim era a United Fruit Company, uma empresa americana criada em 1899 que moldou uma imagem pejorativa da América Latina para o planeta nos séculos 19 e 20.

Essa mesma imagem se manifesta até hoje no imaginário que o mundo tem sobre a região. Dela dependeram gerações de trabalhadores. E a ela se pode atribuir uma dura herança deixada por essas terras: a de que somos uma região de mão de obra barata, quase escrava, destinada a produzir complementos à economia mundial e exposta a uma intempérie política constante.

Foi por causa da UFC que os países do sul das Américas ficaram conhecidos com a infeliz expressão depreciativa "repúblicas das bananas", sinônimo de imaturidade política, corrupção e pobreza.

Nesta semana, uma notícia alentadora veio à tona. Um júri da Flórida decidiu que a Chiquita Brands (nome atual da UFC) é responsável por oito assassinatos cometidos por um grupo paramilitar de direita que a empresa ajudou a financiar em uma região fértil de cultivo de bananas entre 1997 e 2004. Isso mesmo, para defender terrenos de cultivo, a empresa deu dinheiro para as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), um grupo conhecido por terríveis massacres no interior do país.

A literatura da região tem sido um território fértil para a reflexão sobre os aspectos negativos que a United Fruit Company deixou em nossas culturas. Nada menos que quatro prêmios Nobel se dedicaram a chamar a atenção para as consequências de suas ações nos países latino-americanos.

No celebrado "Cem Anos de Solidão", Gabriel García Márquez romanceou a terrível repressão da empresa em La Ciénaga, em 1928, ocorrida quando ele tinha apenas um ano, mas cuja história amedrontava sua geração.

Em "Tempos Ásperos", o peruano Mario Vargas Llosa mostra como a UFC, aliada aos EUA —e por sua vez auxiliados pela ditadura do sangrento ditador dominicano Rafael Trujillo—, derrubaram o governo progressista de Jacobo Árbenz, em 1954.

Outros dois Nobel tratariam do tema. O guatemalteco Miguel Ángel Asturias, em sua "Trilogia Bananera", integrada pelas obras "Viento Fuerte", "El Papa Verde" e "Los Ojos de Los Enterrados", e o chileno Pablo Neruda, em "Calero, Trabajador del Banano".

Outras penas se dedicaram a expor os avanços da UFC na vida econômica e social das Américas. A do costa-riquenho Carlos Luis Fallas ("Mamita Yunai" e "Limón Blues"), a do mexicano Francisco Martín Moreno ("Las Cicatrices del Viento"), a do colombiano Álvaro Cepeda Samudio ("A Casa Grande") e a do hondurenho Ramón Amaya Amador ("Prisión Verde").

A leitura dessas obras traz a reflexão: a América Latina seria diferente se não tivesse passado tanto tempo sob a influência de uma empresa bananeira de tamanho poderio?


Reprodução de texto de Sylvia Colombo na Folha de São PauloFolha de São Paulo

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Fórmula Fraport: capitalismo sem risco


A fórmula está mais do que consagrada: privatizar os lucros, socializar os prejuízos. Toda vez que que os defensores ferrenhos das privatizações, mesmo sob a forma eufemística e provisória de concessões, defendem os seus fins, usam os mesmos meios: os serviços vão melhorar, investimentos importantes serão feitos e riscos ficarão com os concessionários. Na prática, é o melhor negócio do mundo para o privilegiado com a concessão: se tiver lucro extraordinário, embolsa e faz a festa; se houver prejuízo, renegocia, pede aditivo, passa a conta para o velho e detestado Estado, que salta de mínimo a máximo num lance de mágica e de oportunismo. Batismo: Fórmula Fraport.


A tal Fraport surgiu como a salvação do Salgado Filho. Chegou amparada na tríade de ouro das privatizações: modernização, eficiência e agilidade. Havia, porém, uma enchente no meio da pista de decolagem. Como a Fraport reagiu à inundação do seu ganha-pão, caviar e champanha? Do modo mais tradicional, ineficiente e lento possível. Nada fez para rapidamente esvaziar o aeroporto do aguaceiro. Só foi ágil na determinação de repassar a conta dos estragos para o Estado. Assim, cá entre nós, que não falamos mal de ninguém, é barbada: cruza os braços, contempla laconicamente as águas, não mete a mão no bolso nem nas contas no país-sede e espera que o Estado mande dinheiro para repor tudo em ordem e progresso. Em contrário, pode até ir embora.


Para que privatizar então? Para que conceder? Na hora mais difícil, todos querem um Estadão robusto que banque até os seus mais costumeiros críticos. Pede o agronegócio, pede o industrial, pede o setor de serviços, pede o concessionário, pede o grande, pede o médio, só o pequeno não sabe a quem pedir. Todos pedem ao Estado. Nesse andar, não é civil que salva civil, mas Estado pobre que salva civil rico e influente. A Fraport não teve o menor constrangimento em sinalizar o desejo de ter o seu parquinho reconstruído com dinheiro público para que possa obter seus lucros privados em condições normais de temperatura, pressão e volume. O capitalismo estilo Fraport mostra que não se trata de uma jabuticaba, fenômeno exclusivamente brasileiro, mas de uma marca estrutural do capitalismo globalizado.


A fórmula Fraport impressiona pela estultice, pela falta de pudor e pela incompetência. Eu imaginava que a Fraport teria bombas próprias para escoar a água, que faria chegar em tempo recorde equipamento da Alemanha para limpar a sua área e ainda ajudar Porto Alegre e o Rio Grande do Sul a sair do atoleiro. Imaginava a moderna Fraport na linha de frente, voando para todo lado, oferecendo expertise, apoio, meios, pareceres, tudo. Via manchetes nos jornais: Fraport salva o RS, Fraport larga na frente; Bombas da Fraport retiram a água do Quarto Distrito, Fraport limpa o Sarandi. O que eu vi? Isto: “Após demissão em massa, Fraport ainda quer renegociação em contrato de concessão após desastre no RS”; “Sem dinheiro do governo, Fraport pode entregar concessão do Salgado Filho”; “Leite pede que governo ajude concessionária do aeroporto Salgado Filho”. Que decepção!


Em bom gauchês, a Fraport gosta de mamar deitada.



Juremir Machado da Silva na Matinal.