Zhang Yimou, o famoso diretor de cinema e arranjador da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Verão de 2008 em Pequim, foi acusado na semana passada de ser o mais recente infrator da política do filho único da China. O Diário do Povo, o alto-falante do Partido Comunista, alegou que Zhang tem sete filhos com quatro mulheres diferentes.
A notícia despertou um irritado debate online, com internautas condenando a aplicação desigual da lei 1.979, que estipula que cada casal pode ter apenas um filho (ou dois no caso das minorias étnicas e de casais rurais cujo primeiro filho seja uma menina).
A verdade é que, para os ricos, a lei é como um tigre de papel, facilmente contornada mediante o pagamento de uma "taxa de compensação social" – uma multa de 3 a 10 vezes o rendimento anual do lar, definida pelo escritório de planejamento familiar de cada província – ou viajando para Hong Kong, Cingapura ou até para os EUA para dar à luz.
Para os pobres, no entanto, a política é um tigre de carne e osso, com garras e presas. No campo, onde a necessidade de mãos extras para ajudar nas plantações e o desejo patriarcal profundamente enraizado de ter um herdeiro do sexo masculino criaram uma forte resistência às medidas de controle populacional, o tigre tem sido implacável.
Oficiais de planejamento familiar dos vilarejos acompanham vigilantemente o ciclo menstrual e os exames ginecológicos de todas as mulheres em idade de ter filhos em sua área. Se uma mulher fica grávida sem permissão e não for capaz de pagar a multa exorbitante por violar a política, ela corre o risco de ser submetida a um aborto forçado.
De acordo com dados do Ministério da Saúde chinês divulgados em março, 336 milhões de abortos e 222 milhões de esterilizações foram realizadas desde 1971. (Embora a política do filho único tenha sido introduzida em 1979, outras políticas de planejamento familiar bem menos rigorosas já existiam antes dela.)
Estes números são fáceis de citar, mas eles não conseguem transmitir a magnitude do horror enfrentado pelas mulheres rurais na China. Durante uma longa viagem através do interior do sudoeste da China em 2009, tive a oportunidade de conhecer alguns dos rostos por trás desses números.
Retratos
Em barcas precárias ancoradas nas águas remotas de Hubei e Guangxi, conheci centenas de "fugitivos do planejamento familiar" – casais que tiveram de fugir de seus vilarejos para dar à luz ilegalmente a um segundo ou terceiro filho nas províncias vizinhas.
Quase todas as mulheres grávidas com quem conversei tinham passado por um aborto obrigatório. Uma mulher me contou que, quando ela estava grávida de oito meses de um segundo filho ilegal e não conseguiu pagar a multa de US$ 3.200, os oficiais de planejamento familiar a arrastaram para uma clínica local, amarraram-na a uma mesa cirúrgica e injetaram uma droga letal em seu abdômen.
Durante dois dias ela se contorceu sobre a mesa, com as mãos e os pés ainda amarrados com corda, esperando seu corpo expulsar o bebê assassinado. Na etapa final do trabalho de parto, um médico arrancou o feto morto pelo pé, jogando-o em seguida numa lata de lixo. Ela não tinha dinheiro para pegar um táxi. Ela teve que ir mancando para casa, com sangue escorrendo por suas pernas e manchando suas sandálias brancas de vermelho.
Não surpreende o fato de a China ter a maior taxa de suicídio de mulheres do mundo. A política do filho único reduziu as mulheres a números, objetos, a um meio de produção; negando a elas o controle sobre seus corpos e o direito humano básico de determinar de forma livre e responsável quantos filhos querem ter e quando.
Pressão
As meninas também são vítimas da política. Sob pressão da família para garantir que seu único filho seja menino, as mulheres normalmente optam por abortar bebês do sexo feminino ou descartá-las no nascimento, práticas que têm distorcido a proporção de sexo na China para 118 meninos para cada 100 meninas.
O Partido Comunista defende que os meios justificam os fins. Quando Deng Xiaoping e seus colegas reformadores da economia introduziram a política do filho único como uma medida "temporária" em 1979, após a morte de Mao e o fim da calamitosa Revolução Cultural, alegaram que, sem a política do filho único, a economia se enfraqueceria e a população explodiria.
Trinta e quatro anos mais tarde, apesar das críticas crescentes, o partido ainda se apega a ela. Mas seu argumento se baseia numa ciência sórdida: a taxa de natalidade, que já estava caindo antes de a política ser introduzida, está agora oficialmente em 1,8, ou mais próxima de 1,2, de acordo com especialistas em demografia independentes como Yi Fuxian – muito mais baixa do que o nível de 2,1 necessário para a reposição da população. Yi e outros alertaram sobre o iminente desastre demográfico da China: uma nação de rápido envelhecimento que não conseguirá ser sustentada por uma força de trabalho cada vez menor.
O aumento da renda e a urbanização geralmente levam à queda das taxas de natalidade. Se a política do filho único fosse abolida amanhã, a maioria dos chineses não teria pressa para produzir tantos descendentes como Zhang Yimou. E apesar dos sinais recentes de que o Partido pode estar considerando flexibilizar gradualmente as restrições ao nascimento, ainda há uma resistência considerável.
Sem mudança
Os linha-dura teimosos não vão abandonar voluntariamente as medidas de controle populacional que forneceram ao governo cerca de dois trilhões de yuans em multas, de acordo com o demógrafo Ele Yafu, e a possibilidade de manter um controle firme sobre as vidas das pessoas.
A indignação pública manifestada contra Zhang durante a última semana favorece o partido. Em vez de atacar a política bárbara do governo, as pessoas estão sendo incentivadas a criticar o rico por escapar de suas garras.
Acabar com este castigo é um imperativo moral. As atrocidades cometidas em nome da política do filho único ao longo das três últimas décadas estão entre os piores crimes contra a humanidade do século passado. As marcas que ela deixou na China talvez nunca sejam apagadas.
Texto de Ma Jian, para o The New York Times, reproduzido no UOL.