sexta-feira, 31 de maio de 2013

Política do filho único força mães a cometerem brutalidades na China


Zhang Yimou, o famoso diretor de cinema e arranjador da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Verão de 2008 em Pequim, foi acusado na semana passada de ser o mais recente infrator da política do filho único da China. O Diário do Povo, o alto-falante do Partido Comunista, alegou que Zhang tem sete filhos com quatro mulheres diferentes.
A notícia despertou um irritado debate online, com internautas condenando a aplicação desigual da lei 1.979, que estipula que cada casal pode ter apenas um filho (ou dois no caso das minorias étnicas e de casais rurais cujo primeiro filho seja uma menina).
A verdade é que, para os ricos, a lei é como um tigre de papel, facilmente contornada mediante o pagamento de uma "taxa de compensação social" – uma multa de 3 a 10 vezes o rendimento anual do lar, definida pelo escritório de planejamento familiar de cada província – ou viajando para Hong Kong, Cingapura ou até para os EUA para dar à luz.
Para os pobres, no entanto, a política é um tigre de carne e osso, com garras e presas. No campo, onde a necessidade de mãos extras para ajudar nas plantações e o desejo patriarcal profundamente enraizado de ter um herdeiro do sexo masculino criaram uma forte resistência às medidas de controle populacional, o tigre tem sido implacável.
Oficiais de planejamento familiar dos vilarejos acompanham vigilantemente o ciclo menstrual e os exames ginecológicos de todas as mulheres em idade de ter filhos em sua área. Se uma mulher fica grávida sem permissão e não for capaz de pagar a multa exorbitante por violar a política, ela corre o risco de ser submetida a um aborto forçado.
De acordo com dados do Ministério da Saúde chinês divulgados em março, 336 milhões de abortos e 222 milhões de esterilizações foram realizadas desde 1971. (Embora a política do filho único tenha sido introduzida em 1979, outras políticas de planejamento familiar bem menos rigorosas já existiam antes dela.)
Estes números são fáceis de citar, mas eles não conseguem transmitir a magnitude do horror enfrentado pelas mulheres rurais na China. Durante uma longa viagem através do interior do sudoeste da China em 2009, tive a oportunidade de conhecer alguns dos rostos por trás desses números.

Retratos

Em barcas precárias ancoradas nas águas remotas de Hubei e Guangxi, conheci centenas de "fugitivos do planejamento familiar" – casais que tiveram de fugir de seus vilarejos para dar à luz ilegalmente a um segundo ou terceiro filho nas províncias vizinhas.
Quase todas as mulheres grávidas com quem conversei tinham passado por um aborto obrigatório. Uma mulher me contou que, quando ela estava grávida de oito meses de um segundo filho ilegal e não conseguiu pagar a multa de US$ 3.200, os oficiais de planejamento familiar a arrastaram para uma clínica local, amarraram-na a uma mesa cirúrgica e injetaram uma droga letal em seu abdômen.
Durante dois dias ela se contorceu sobre a mesa, com as mãos e os pés ainda amarrados com corda, esperando seu corpo expulsar o bebê assassinado. Na etapa final do trabalho de parto, um médico arrancou o feto morto pelo pé, jogando-o em seguida numa lata de lixo. Ela não tinha dinheiro para pegar um táxi. Ela teve que ir mancando para casa, com sangue escorrendo por suas pernas e manchando suas sandálias brancas de vermelho.
Não surpreende o fato de a China ter a maior taxa de suicídio de mulheres do mundo. A política do filho único reduziu as mulheres a números, objetos, a um meio de produção; negando a elas o controle sobre seus corpos e o direito humano básico de determinar de forma livre e responsável quantos filhos querem ter e quando.

Pressão

As meninas também são vítimas da política. Sob pressão da família para garantir que seu único filho seja menino, as mulheres normalmente optam por abortar bebês do sexo feminino ou descartá-las no nascimento, práticas que têm distorcido a proporção de sexo na China para 118 meninos para cada 100 meninas.
O Partido Comunista defende que os meios justificam os fins. Quando Deng Xiaoping e seus colegas reformadores da economia introduziram a política do filho único como uma medida "temporária" em 1979, após a morte de Mao e o fim da calamitosa Revolução Cultural, alegaram que, sem a política do filho único, a economia se enfraqueceria e a população explodiria.
Trinta e quatro anos mais tarde, apesar das críticas crescentes, o partido ainda se apega a ela. Mas seu argumento se baseia numa ciência sórdida: a taxa de natalidade, que já estava caindo antes de a política ser introduzida, está agora oficialmente em 1,8, ou mais próxima de 1,2, de acordo com especialistas em demografia independentes como Yi Fuxian – muito mais baixa do que o nível de 2,1 necessário para a reposição da população. Yi e outros alertaram sobre o iminente desastre demográfico da China: uma nação de rápido envelhecimento que não conseguirá ser sustentada por uma força de trabalho cada vez menor.
O aumento da renda e a urbanização geralmente levam à queda das taxas de natalidade. Se a política do filho único fosse abolida amanhã, a maioria dos chineses não teria pressa para produzir tantos descendentes como Zhang Yimou. E apesar dos sinais recentes de que o Partido pode estar considerando flexibilizar gradualmente as restrições ao nascimento, ainda há uma resistência considerável.

Sem mudança

Os linha-dura teimosos não vão abandonar voluntariamente as medidas de controle populacional que forneceram ao governo cerca de dois trilhões de yuans em multas, de acordo com o demógrafo Ele Yafu, e a possibilidade de manter um controle firme sobre as vidas das pessoas.
A indignação pública manifestada contra Zhang durante a última semana favorece o partido. Em vez de atacar a política bárbara do governo, as pessoas estão sendo incentivadas a criticar o rico por escapar de suas garras.
Acabar com este castigo é um imperativo moral. As atrocidades cometidas em nome da política do filho único ao longo das três últimas décadas estão entre os piores crimes contra a humanidade do século passado. As marcas que ela deixou na China talvez nunca sejam apagadas.

Texto de Ma Jian, para o The New York Times, reproduzido no UOL

A Comissão da Verdade e as viúvas da ditadura


Em grupos que defendem a falecida ditadura militar é visível uma certa comoção a cada denúncia que aparece sobre as violências cometidas naquele período. Quando se fala em estupro, sequestro, ocultação de cadáver e outros crimes cometidos por agentes que atuavam acobertados pelo aparato do Estado, esses grupos torpedeiam portais de noticias, blogs e fóruns de leitores com mensagens destinadas a desvalorizar os relatos e a Comissão Nacional da Verdade.
Dizem que deveria se chamar comissão da meia verdade e que foi criada pelo PT para investigar só os crimes cometidos por policiais e militares. Perguntam: e os crimes cometidos pelos militantes de esquerda que pegaram em armas, assaltaram bancos e cometeram outras violências?
Também investem contra meios de comunicação e jornalistas: por que não mostram os dois lados? Por que desenterram o passado em vez de se preocupar com coisas mais importantes, como o mensalão e outras denúncias contra o PT? Por que o jornalista não diz que em 1964 o Brasil estava à beira de um abismo? Se não houvesse o golpe militar e a violência que trouxe em seu bojo, argumentam, teríamos virado uma Cuba.
No fundo, continuam os mesmos. Não gostam da liberdade de imprensa.
A ditadura controlava o que os jornais diziam. Notícias desabonadoras para o regime eram vetadas. A lista de assuntos interditos variava de denúncias de tortura a reportagens sobre casos de corrupção que grassavam no governo. Em 1974 chegaram a proibir notícias sobre a epidemia de meningite que apavorou São Paulo e causou centenas de mortes.
Vigiavam as redações com a suspeita de que não passavam de valhacoutos de comunistas. Afinal, a quem interessava, senão aos comunistas, denunciar que o governo falhara na prevenção da epidemia de meningite?
Para que dizer que opositores do regime eram arrancados de suas casas à noite, diante de mulheres e filhos, e levados para locais ignorados, sem direito a defesa, sem qualquer informação para a família, para os advogados e os juízes e sem qualquer possibilidade de habeas corpus?
A retórica desses grupos precisa ser atualizada. Alguém acredita, sinceramente, que a imprensa não dá atenção ao mensalão? Que as lambanças do PT não são denunciadas?
O mesmo se pode dizer em relação ao terrorismo de esquerda, lembrado pelo coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra em seu depoimento à Comissão da Verdade, após solicitar um habeas corpus na Justiça Federal. O insulto dele à presidente Dilma, chamando-a de terrorista, está velho e empoeirado. Já foi explorado de todas as maneiras desde o momento em que o nome dela começou a ser cogitado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo.
Quantos aos militantes de esquerda que pegaram em armas, é mais que sabido que pagaram pelos seus atos. Uma parte deles foi caçada, localizada e executada barbaramente pelos agentes de Estado. A outra parte, a que sobreviveu, foi julgada e condenada à prisão por auditorias militares. A presidente Dilma teve a sorte de fazer parte do segundo grupo.
Há milhares e milhares de páginas nos arquivos militares sobre cada um desses militantes. Ao contrários dos arquivos com informações sobre mortos e desaparecidos, elas são públicas.
A questão central é que desde o fim da ditadura, em 1985, o Brasil tenta em vão descobrir a verdade sobre o que não foi dito, os fatos ocorridos nos porões do Estado autoritário. Foi para isso que a Comissão Nacional da Verdade surgiu.
Ela nasceu de uma lei aprovada democraticamente no Congresso, com a tarefa de investigar e esclarecer as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado contra cidadãos que deveria proteger. Não é uma exclusividade brasileira: todas as comissões da verdade criadas no mundo agiram da mesma direção.
Seria mais interessante, a essa altura dos debates, que as viúvas da ditadura ajudassem a esclarecer os fatos investigados e prestassem atenção ao debate em torno da Lei da Anistia. Atacar a imprensa, o passado já demonstrou, não é o melhor caminho.

Texto de Roldão Arruda, em O Estado de São Paulo, visto no Blog do Juremir Machado da Silva

O tempo das revoluções simultâneas


A Lei de Responsabilidade Fiscal de Fernando Henrique Cardoso foi um dos últimos atos da república oligárquica brasileira, atenta à estabilidade da moeda e fiadora de contratos. Necessária, sem dúvida, mas Campos Sales, se vivo, aplaudiria de pé em nome dos oligarcas. Mas já não ficaria tão satisfeito com que o veio a seguir. Depois de promover drástica rearrumação nas prioridades de governo, o presidente Lula instaurou no país uma trajetória de crescimento via promoção social deixando para trás, definitivamente, a memória de Campos Sales e de seus rebentos tardios. Milhões de famílias secularmente atreladas às sobras do universo econômico foram a ele integradas como ativos atores e consumidores. Desde agora, para desgosto de alguns e expectativa de todos os demais, a história do Brasil não se fará sem o concurso participante do trabalho e das preferências desse novo agregado a que chamamos de povo.
Com Dilma Rousseff instalou-se a desordem criadora, aquela que não deixa sossegada nenhuma rotina nem contradição escondida. Não há talvez sequer um segmento da economia, dos desvãos sociais e das filigranas institucionais que não esteja sendo desafiado e submetido a transformação. Da assistência universal à população, reiterando e expandindo a trilha inaugurada por Lula, à reformulação dos marcos legais do crescimento econômico, à organização da concorrência, à multiplicação dos canais de troca com o exterior, ao financiamento maiúsculo da produção, aos inéditos programas de investimento submetidos à iniciativa privada, a sacudidela na identidade nacional alcança de norte a sul. A cada mês de governo parece que sucessivas bandeiras da oposição tradicional tornam-se obsoletas. Já eram.
O tempo é de revoluções simultâneas, cada qual com seu ritmo e exigências específicas, o que provoca inevitáveis desencontros de trajetos. Uma usina geradora de energia repercute na demanda por vários serviços, insumos, mão de obra, criando pressões, tensões, balbúrdias. Li em Carta Maior (9/4/13) que a Associação Brasileira de Tecnologia para Equipamentos e Manutenção informa que, no Brasil, convivem hoje 12.600 obras em andamento e agendadas até 2016. Ainda segundo a mesma fonte, das 50 maiores obras em execução no planeta, 14 estão sendo realizadas no país. Claro que os leitores não serão informados pela mídia tradicional. A monumental transformação do país, que não precisa apenas crescer, mas descontar enorme atraso histórico, produz entrechoques das dinâmicas mais díspares, o que surge, na superfície, como desordem conjuntural. É, contudo, indicador mais do que benigno. Mas disso os leitores só são informados em reportagens e manchetes denunciando o que estaria sendo o atual desgoverno do país. Qual…
Os melhores informativos do estado geral da nação encontram-se nos portais do IBGE, do IPEA e afins. Os antigos jornalões apequenaram-se. São, hoje, nanicos.

Texto de Wanderley Guilherme dos Santos, em O Cafezinho, via Blog do Juremir Machado da Silva

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Temer diplomata


A visita de Joe Biden faz refletir sobre o papel do vice-presidente na política externa de um país.
Na história brasileira, a atuação diplomática dos vices foi supérflua ou inexistente.
Michel Temer parece estar transformando esse quadro.
No ano passado, ele visitou 11 países. Em Brasília, recebe autoridades estrangeiras com regularidade.
Isso ocorre porque a demanda por encontros de alto nível é cada vez maior e Dilma não consegue responder a tudo o que é importante.
Então Temer participa da posse de presidentes em nações vizinhas, chefia delegações em foros multilaterais e realiza viagens de negócios.
Como gosta de política internacional e a diplomacia lhe cai bem, o vice-presidente também vem se ocupando de pautas difíceis.
Coube a ele restaurar os canais com a Itália depois do caso Battisti. É dele a chefia do diálogo diplomático com China e Rússia. E Dilma solicitou-lhe atenção especial aos países árabes. (Filho de libaneses, ele goza de prestígio ímpar na comunidade árabe, um grupo de quase 12 milhões de brasileiros).
Se continuar nessa rota, Temer poderá transformar-se em conselheiro presidencial de primeiro nível para assuntos internacionais.
Isso é uma excelente notícia para a política externa brasileira.
A Vice-Presidência da República, independentemente do titular, é um centro de poder com autoridade própria. Em diplomacia, trata-se de uma característica que vale ouro. Por isso, tanto militares quanto diplomatas têm pedido cada vez mais Temer.
O potencial diplomático do vice brasileiro é amplo.
Atuando acima dos interesses paroquiais de cada um dos órgãos de governo, ele poderia discipliná-los. Hoje, o Estado brasileiro atua fora das fronteiras de forma bastante descoordenada, produzindo um descompasso que já traz custos elevados em casos como Haiti, África, Atlântico Sul e Brics. O vice poderia ajudar a reverter a situação.
Além disso, como articulador da aliança governista, o vice brasileiro está em condição privilegiada para pressionar o Legislativo sempre que a disputa parlamentar empaca matérias de interesse direto para o processo de ascensão do país no sistema internacional.
Por isso, talvez fosse útil aproveitar a atual conjuntura para estudar a melhor maneira de envolver o vice em assuntos internacionais.
Temer tem feito bastante em política externa. Pode fazer muito mais.
Claro que uma decisão dessa natureza traz riscos embutidos. Afinal, o alinhamento entre um presidente e seu número dois nunca é perfeito. E qualquer rachadura, quando exposta, pode virar crise grave.
Contudo, seria um equívoco restringir o perímetro de atuação internacional do vice por aversão ao risco. Quem mais tem a ganhar com seu envolvimento ativo é o próprio governo, transformando o cargo em alavanca negociadora do mundo afora.
A transformação da Vice-Presidência da República em um ator diplomático com espaço próprio é um projeto simples, barato e de grande impacto.
Isso ninguém deveria temer.


Texto de Matias Spektor, publicado na Folha de São Paulo

A farsa da anistia


Motivada por afirmações de membros da Comissão da Verdade referentes à necessidade de reinterpretação da Lei da Anistia, esta Folha abriu mais uma vez espaço importante para o debate a respeito do problema. Artigos assinados e editoriais apareceram nos últimos dias mostrando como esta é uma discussão da qual o Brasil não pode escapar.
Neste momento, a Comissão da Verdade começa a desmontar antigas mentiras veiculadas pelo regime militar, como assassinatos travestidos de suicídios e desaparecimentos ou aquela afirmação patética de que as ações de tortura não eram uma política de Estado decidida pela alta cúpula militar. Ela também colocou à luz a profunda relação entre empresariado e militares na elaboração e gestão do golpe.
No entanto, uma das maiores mentiras herdadas daquele período é a história de que existiu uma anistia resultante de ampla negociação com setores da sociedade civil e da oposição. Aquilo que chamamos de "Lei da Anistia" foi e continua sendo uma mera farsa.
Primeiro, não houve negociação alguma, mas pura e simples imposição das condições a partir das quais os militares esperavam se autoanistiar.
O governo de então recusou a proposta do MDB de anistia ampla, geral e irrestrita, enviando para o Congresso Nacional o seu próprio projeto, que andava na contramão daquilo que a sociedade civil organizada exigia.
Por não ter representatividade alguma, o projeto passou na votação do Congresso por míseros 206 votos contra 201, sendo todos os votos favoráveis vindos da antiga Arena. Ou seja, só em um mundo paralelo alguém pode chamar de "negociação" a um processo no qual o partido governista aprova um projeto sem acordo algum com a oposição. Há de se parar de ignorar compulsivamente a história brasileira.
Segundo, mesmo essa Lei da Anistia era clara a respeito de seus limites. No segundo parágrafo do seu primeiro artigo lê-se: "Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, de assalto, de sequestro e atentado pessoal". Por isso, a maioria dos presos políticos não foi solta em 1979, ano da promulgação da lei (por favor, leia a frase mais uma vez). Eles permaneceram na cadeia e só foram liberados por diminuição das penas.
Os únicos anistiados, contra a letra da lei que eles próprios aprovaram, foram os militares que praticaram terrorismo de Estado, sequestro, estupro, ocultação de cadáver e assassinato. A Lei da Anistia consegue, assim, a proeza de ser, ao mesmo tempo, ilegítima na sua origem e desrespeitada exatamente pelos que a impuseram.

Texto de Vladimir Safatle, publicado na Folha de São Paulo.

A lei islâmica ameaça a faixa de Gaza


Silenciosamente, o Hamas voltou a pôr à prova a paciência dos moradores da faixa de Gaza. Um grupo de parlamentares afiliados a esse movimento propôs no início do mês, no Conselho Legislativo, um novo Código Penal de acordo com a sharia, ou lei islâmica. Em suas partes cruciais, propõe instaurar o castigo islâmico, com a amputação da mão direita por roubo e o chicoteamento por ofensas sexuais, e ficam eximidos de represálias aqueles que cometerem crimes se esses servirem para defender a imposição da própria sharia.
Seria um passo decisivo na islamização da Faixa, que não passou despercebido aos moradores laicos e moderados que ainda têm fé em uma reconciliação com a classe política que governa na Cisjordânia para pôr fim a essas incursões no extremismo.
Nos maltratados edifícios da cidade de Gaza, se observam nestes dias numerosas bandeiras amarelas da Fatah, o partido laico do presidente Mahmud Abbas, que foi expulso da faixa depois de uma guerra civil, há seis anos. Ele governa agora a Cisjordânia, enquanto Gaza ficou sob o controle do Hamas. As recentes pesquisas realizadas na faixa de Gaza sugerem que Abbas e a Fatah ganhariam terreno nas eleições, em detrimento do grupo islâmico.
Semanalmente, um grupo de moradores de Gaza se manifesta diante do Parlamento em favor da reunificação palestina. "O Hamas está tratando Gaza como se fosse seu feudo e propõe leis que afetam de forma negativa as mulheres e aqueles que não creem em sua forma de ver a vida", dizia em uma dessas concentrações, na terça-feira passada, Tahrir Al Haj, 45.
Al Haj, membro do Conselho Revolucionário da Fatah, é proibida pelo Hamas de viajar, seja para a Cisjordânia ou o Egito. Cobria seu cabelo com um véu, mas acredita que isso é algo que a própria consciência deve ditar, e não o governo. Ao seu lado, o jornalista Fathi Tobail, 59, estava proibido de cobrir a manifestação. Trabalhava para a Wafa, a agência de notícias da Autoridade Palestina, proibida em Gaza. Em novembro, ele foi preso. "O Hamas veio e me deteve. Acusaram-me de conspirar com as autoridades de Ramallah. Ocuparam meu escritório e o destruíram. Agora não posso trabalhar, por simpatizar com a Fatah. Os que pensam como eu são presos e interrogados, mas nunca nos enviam a julgamento. De que iriam nos acusar?", diz.
Aqueles que, como Al Haj e Tobail, não simpatizam com o Hamas detectam nestes dias um padrão no comportamento político do grupo islâmico: quando quer uma mudança, apresenta uma reforma por via legislativa ou executiva, ou nas ruas, através da polícia. Se não houver queixas, a medida fica em pé. Se houver indignação, é colocada entre parênteses, até que seja hora de retomá-la. Assim ocorreu com as patrulhas policiais que, em abril, detiveram e rasparam as cabeças de uma dúzia de jovens, acusados pela polícia de usar penteados pouco recatados. Ou quando se tentou proibir que as mulheres fumassem narguilé, o que continua sendo feito. E assim ocorreu agora com o Código Penal.
"Reunimo-nos recentemente com representantes do Hamas para falar sobre o assunto", afirma Khalil Abu Shamala, diretor da organização de direitos humanos Al Dameer. "Dissemo-lhes claramente que o que o Hamas está fazendo com as leis não é correto, e que não tem faculdade para editar leis, porque eleições legislativas deveriam ter ocorrido há tempos e não as convocaram. Operando em um vazio legal, não só tentam islamizar a sociedade. Querem transformar Gaza em um Hamastão."
No projeto de lei em questão, do qual este jornal obteve uma cópia, o Hamas penalizaria a sodomia, por exemplo, com "cem chicotadas e a possibilidade de prisão de até cinco anos". Para os reincidentes em duas ocasiões, contempla "pena de morte ou prisão perpétua".
"O Conselho Legislativo da Palestina não pretende promover essa lei. Foi, na realidade, um dos membros do Parlamento que a sugeriu, houve um debate a respeito e a maioria a rejeitou", replica Taher Al Nounou, porta-voz do governo palestino de Gaza, afiliado ao Hamas. "No governo, acreditamos que a sociedade está bem como está. Não precisamos de mais islamização. O islã é algo que se mantém com a ética e os hábitos, e as pessoas aqui já o cumprem. Não precisamos de nada mais, não desejamos o fundamentalismo", acrescenta.
Nem todos os problemas que separam o Hamas da Fatah são de índole moral ou se referem ao islamismo. Seis anos de divisões é muito tempo. Nas prisões de Gaza, há 12 pessoas afiliadas à Fatah, condenadas por crimes durante a guerra civil entre as duas facções, de 2006 a 2007. O Hamas acusa a Fatah de ter fechado na Cisjordânia até 300 organizações de caridade de linha islâmica, relacionadas ao Hamas. Em um acordo assinado no Cairo em 2011, ambas as partes se comprometeram a criar em 12 meses um governo interino de unidade, antes da convocação de eleições. Já se passaram 25 meses.
Em abril, demitiu-se o primeiro-ministro da Autoridade Palestina, o tecnocrata Salam Fayyad, que o Hamas nunca reconheceu e que seus representantes detestam. Al Nounou, porta-voz do governo do Hamas, o tachou de corrupto em várias ocasiões durante uma entrevista a este jornal. Ambas as partes afirmam que, diante das circunstâncias, talvez este seja o momento de avançar para um governo de união nacional, que dizem desejar.
Há uma semana reuniram-se novamente no Cairo e concordaram em formar um novo Executivo interino em três meses. Esse foi o prazo fixado no Egito, mas nos relógios de Gaza os tempos políticos avançam em um ritmo muito diferente, impermeável às decisões tomadas no exterior.

Reportagem de David Alandete, para o El País, reproduzido no UOL. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Colombianos permanecem divididos quanto às negociações de paz com as Farc


Washington está apoiando os esforços de paz do presidente colombiano, Juan Manuel Santos, que decidiu negociar com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). "Da mesma forma que apoiamos os dirigentes colombianos no campo de batalha, nós aprovamos totalmente as negociações", declarou, na segunda-feira (27), o vice-presidente americano, Joe Biden, em visita a Bogotá. Como parte do plano "Colômbia" criado para combater o tráfico de drogas e os movimentos armados, os Estados Unidos forneceram à Colômbia mais de US$ 8 bilhões (cerca de R$ 16 bilhões) em ajuda militar entre 2000 e 2012.
As negociações com a guerrilha, que ainda conta com oito mil combatentes armados, foram iniciadas sem cessar-fogo. Na prática, o confronto continua. No domingo, o governo e as Farc anunciaram terem chegado a um acordo sobre o desenvolvimento rural, primeiro ponto da agenda das negociações, que vêm ocorrendo desde novembro de 2012, em Havana. "É um primeiro passo gigantesco", afirmou o presidente Santos.
Otimistas ou críticas, as reações foram exaltadas. Os partidários das negociações consideram o acordo "histórico". Os detratores do diálogo de paz acusam uma catástrofe. "É inaceitável que o governo negocie o modelo de desenvolvimento rural com narcoterroristas", tuitou o ex-presidente Álvaro Uribe, líder da oposição.
Defensor de uma solução militar, ele acusa seu sucessor de legitimar a guerrilha. "O acordo sobre o desenvolvimento rural, que ninguém leu, permite que cada um continue defendendo seu ponto de vista", observa o pesquisador Frédéric Massé. O texto, que teria dezenas de páginas, segundo rumores, não foi divulgado.

"Transformação radical da realidade rural"

O governo exigiu que as negociações fossem feitas no exterior, com certa discrição, e que não fosse assinado nada antes de se chegar a um acordo global. "Nada estará decidido até que tudo esteja decidido", lembrou o negociador-chefe do governo, Humberto de la Calle.
Portanto, o texto sobre o desenvolvimento rural é somente um acordo parcial, ainda incompleto até mesmo na opinião das duas partes. Ninguém duvida das dificuldades envolvidas em sua aplicação, quando chegar o momento. Mas, a curto prazo, ele dá um alento ao processo de paz e ao presidente Santos.
Pela primeira vez em cinquenta anos de conflito armado (e quatro tentativas de negociações), os dois lados chegaram a um acordo sobre a questão crucial das terras. "Há meio século a miséria e a iniquidade do mundo rural forneceram às Farc uma razão de ser, um discurso e um inesgotável reservatório de buchas de canhão", resume um alto funcionário.
O presidente Santos, ao nomear na segunda-feira um novo ministro da Agricultura, deu alguns detalhes sobre o acordo. A distribuição de milhares de hectares aos camponeses, a modernização do registro de propriedade e a luta radical contra a pobreza no campo --através da criação de programas de educação, saúde e infraestrutura-- abrirão o caminho para uma "transformação radical da realidade rural".

Participação política dos combatentes desmobilizados

O chefe do Estado quis se mostrar tranquilizador: "Aqueles que adquiriram legalmente suas terras não têm nada a temer." Só de ouvir falar em reforma agrária os proprietários de terras e pecuaristas se arrepiam, nesse país onde mais de 50% das terras estão nas mãos dos menos de 2% de ricos. No entanto, segundo o instituto Fedesarrollo, três quartos dos produtores agrários afirmam que se beneficiarão com um acordo de paz.
Uma nova rodada de negociações começará no dia 11 de junho. Ela permitirá a abordagem do segundo ponto da agenda, a participação política dos combatentes desmobilizados. A questão promete ser ainda mais espinhosa pelo fato de que ela supostamente decidiria se os guerrilheiros culpados de crimes irão ou não para a prisão. Os líderes das Farc pretendem de fato escapar de qualquer processo judicial, ainda que transitório. Os críticos do processo de paz alertam sobre os riscos de impunidade.
Longe das negociações de Havana, longe das grandes cidades colombianas, os combates continuam. Segundo fonte oficial, 426 guerrilheiros foram capturados, 320 desertaram e 99 foram mortos desde o início das negociações, seis meses atrás. As emboscadas, minas e snipers continuam letais: 177 soldados e policiais morreram. Os partidários de uma solução negociada veem ali uma razão a mais para apoiar as negociações de Havana.

Reportagem de Marie Delcas, para o Le Monde, reproduzida no UOL.

Análise: É provável que endurecimento de pena não reduza tráfico


A internação involuntária de dependente de droga vai resolver o problema das cracolândias? O aumento de pena para traficante vai diminuir o tráfico?
A atual Lei de Drogas não prevê a internação como medida de reinserção social. A palavra internação, aliás, inexiste na legislação.
O projeto inova ao prever o tratamento contra a vontade do usuário. Ele poderá ser aplicado a pedido de familiar ou de servidor público.
É possível manter a pessoa abstinente durante a internação. Mas sem atendimento multiprofissional ela provavelmente retornará à droga. Terá valido a pena?
Uma internação involuntária, pura e simples, priva o cidadão de sua liberdade, já privada pela droga. Seria saudável que a alteração legislativa viesse acompanhada de uma mudança na política pública de atendimento.
A proposta também prevê aumento da pena mínima para traficantes para 8 anos.
Muito se discute acerca da ineficácia do aumento de pena como forma de diminuição de crimes. Pesquisas mostram que aumentar a pena de um crime, por si só, não diminui a sua prática.
A atual pena (5 a 15 anos) para tráfico foi estabelecida em 2006. A pena anterior era de 3 a 15 anos, conforme lei de 1976. O aumento de pena diminuiu o tráfico? Não.
O aumento que se pretende promover agora vai diminuí-lo? Provavelmente não. Mas uma coisa é certa: o número de presos por tráfico irá aumentar e afetar o já combalido sistema penitenciário.


Texto de André Mendes, para a Folha de São Paulo. 

Contra o tráfico, investigar bancos é mais importante do que aumentar penas, dizem especialistas

O aumento da pena mínima para traficantes de drogas de cinco para oito anos,aprovado na terça-feira (28) pela Câmara dos Deputados, não resolve o problema do crime organizado, que depende da conivência de "paraísos fiscais e instituições financeiras" para prosperar, segundo especialistas. O texto, que agora segue para o Senado, enquadra criminosos que chefiem um grupo de quatro ou mais pessoas.


"É um projeto populista, que não resolve o problema estrutural do crime. O crime organizado se combate com inteligência, e não apenas aumentando penas", diz Martim Sampaio, coordenador da comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil).
"O tráfico é uma pirâmide: na base estão os soldados, 'aviõezinhos' e pequenos vendedores de rua, e é nesta faixa que são feitas as prisões. Agora quem empresta dinheiro ao tráfico? Quem lava o dinheiro da venda de drogas?".
Para Martim, as instituições financeiras são "peça chave" no tráfico de drogas em todos os países do mundo, e atacar o crime organizado sem combater lavagem de dinheiro e o envolvimento de políticos e paraísos fiscais no processo é 'enxugar gelo'.
"O atacadista que vende drogas movimenta grandes somas de dinheiro, que passam pelos bancos. O topo da pirâmide é que precisa ser atacada para que se solucione o problema".
O advogado Rafael Custodio, coordenador de Justiça da Conectas Direitos Humanos, afirma que "não dá para imaginar que o traficante que está na favela seja último elo do crime organizado. Sabemos que acima dele existem outros envolvidos que não moram nas comunidades. O dinheiro da venda de drogas não fica na favela, vai para outro lugar: o traficante injeta o dinheiro sujo na economia lícita, e por isso é necessário que a polícia rastreie essas quantias e investigue onde ele está sendo lavado".
"Essa ideia de que aumentar penas ou criminalizar condutas ajuda no combate ao tráfico já se mostrou fracassada. A lei que está sendo modificada é de 2006, e já havia aumentado muito as penas. Nem por isso o tráfico diminuiu".
Segundo Rafael Galati Sábio, defensor público e integrante do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de SP, "o aumento da pena não terá  efeito no tráfico, já que  a questão das drogas é mais ampla. O traficante deve ser preso, processado e condenado. Mas o que se vê é a inexistência de investigações policiais. Geralmente as prisões são todas em flagrante, envolvendo pequenos traficantes que são repostos facilmente no mercado do tráfico".
O deputado Osmar Terra (PMDB-RS),autor do projeto, afirma que "existem apenas dois caminhos para se combater o tráfico: o aumento do rigor no enfrentamento às drogas, o que nunca foi feito pelo Estado, ou liberar".
"Queremos diminuir o número de doentes, usuários e viciados, e para isso é preciso enfrentar o traficante. Eu sou a favor da prisão do pequeno traficante", diz.

Fonte: UOL Notícias.

O STF é uma instituição familiar


O Supremo Tribunal Federal vem encantando o Brasil como instituição moralizadora. O ministro Joaquim Barbosa é o atual paladino da ética e dos bons costumes. Um herói inesperado e poderoso que, conforme o clichê, “está passando o país a limpo e colocando ordem na casa”, ainda mais que, nos últimos tempos, a casa andava, cada vez mais, sendo chamada de casa da mãe joana, seja lá quem tenha sido essa pobre Joana.
Diante das imoralidades do legislativo e das alianças flexíveis do executivo, o judiciário tornou-se a última esperança de uma classe média desejosa de bons exemplos, de rigor e de punição.
O melhor de tudo é que o STF é um organismo familiar. Preocupa-se em não separar casais, especialmente casais em que um dos cônjuges use toga. Graças, como tem sido noticiado, a uma “norma interna” o STF paga passagens em primeira classe para que as esposas dos ministros acompanhem os maridos nas suas viagens. É o que se chama popularmente de mamata, teta, privilégio, boquinha, imoralidade, sacanagem, barbadinha, mordomia e outros termos menos publicáveis num jornal familiar. Só a esposa do ministro Gilmar Mendes, em dois anos, acompanhou o esposo em 20 viagens ao estrangeiro. Eis uma senhora amantíssima e zelosa que se sente bem junto ao marido. Deveria receber uma medalha de esposa modelar.
O STF oferece excelentes e invejáveis condições de trabalho aos seus ministros. O heroico Joaquim Barbosa sofre da coluna. Quanto esteve em licença para tratamento de saúde, fez várias viagens pelo Brasil, todas pagas pelos cofres públicos. Curioso é que essas situações até hoje não chamaram a atenção dos próprios ministros, esses fantásticos moralizadores da vida nacional. Deve haver uma explicação para isso. O mais provável é que os ministros, empenhado em tirar a sujeira escondida sob os tapetes da nação, ainda não tenham tido tempo de examinar o que há embaixo dos tapetes persas do próprio STF. Além disso, soterrados pelo peso das responsabilidades, não podem viajar sozinhos, precisando das esposas para ajudá-los a suportar nos ombros a carga da limpeza nacional.
É sabido que a justiça brasileira só tem um credo: a legalidade. Se é legal, mesmo com base em “norma interna”, vale. Nossa justiça não é moralista, embora se queira moralizadora. Nossa justiça não é moralista consiga mesma. Existe, certamente, outra razão para justificar o pagamento pelos cofres públicos das passagens das esposas dos ministros do STF. Ninguém deve crer que elas acompanham os maridos apenas para fazer turismo. Seria desrespeitoso com nossos magistrados pensar isso. A hipótese radical que se pode levantar é esta: financiar a viagem da esposa de um ministro contribui para a sua missão moralizadora ao evitar que ele caia na tentação de uma traição. São muitas as possibilidades em hotéis de luxo de países sem a tradição familiar brasileira. Uma amante ocasional minaria o STF.
O leigo acha que o STF tem legislado indevidamente atropelando o legislativo e submetendo o executivo. Poderia legislar sobre essas tetinhas constrangedoras só para dar exemplo de austeridade. É a opinião de quem não entende das necessidades essenciais de um ministro STF.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Um julgamento de ribalta não produz segurança jurídica

A história ainda julgará o Supremo Tribunal Federal (STF) pelo dia 17 de dezembro de 2012, quando a mais alta Corte brasileira concluiu o julgamento do chamado “mensalão”. Nos cinco meses seguintes ao gran finale do show midiático promovido pelos ministros do Supremo durante todo o processo eleitoral, ocorreu uma sucessão de fatos que desmontam várias das condenações dadas aos envolvidos no caso. Existe um vigoroso conjunto de novas provas produzidas pelos advogados e acusados, boa parte delas desconsiderada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e pelo relator da matéria no STF, ministro Joaquim Barbosa, e desmentidos lógicos a premissas importantes do julgamento – que, se houver alguma racionalidade e justiça no julgamento dos embargos dos condenados, poderá resultar na redução de pena de vários deles; e, no limite, pode inocentar os casos mais flagrantes de condenação sem provas, ou a condenação por provas que não eram provas.

Quanto mais o tempo se afasta do rumoroso julgamento do chamado “mensalão”, mais a fragilidade do julgamento fica evidente. Isso não ocorre porque a “fragilidade ficou mais frágil” – apenas porque a opinião pública e os especialistas que passam a ter acesso aos fatos sem a mediação dos meios de comunicação estão mais distanciados da onda de comoção criada nos meses que antecederam o julgamento dos envolvidos numa denúncia feita por um aliado da base do governo, Roberto Jefferson, presidente do PTB, num momento de raiva pela divulgação de uma denúncia contra um seu indicado para os Correios, em 2005. Nesse acesso, Jefferson agravou um crime do qual participou: transformou um caixa dois de campanha – a transferência de dinheiro “frio”, pelas empresas de Marcos Valério, para o seu partido, para pagamento de dívidas de campanha das eleições municipais de 2004 – em uma fantástica história sobre como o Partido dos Trabalhadores comprou apoio dos partidos aliados dentro do Congresso. Jefferson virou réu e desmentiu-se, dizendo que caixa dois não é mensalão. Não adiantou. Foi condenado pelo “mensalão”.

O “mensalão” teve duas grandes ondas de comoção que decidiu os seus destinos: a primeira, em 2005, quando Jefferson botou a boca no trombone. A crise provocada pela mídia, avalizadas por sucessivos pequenos vazamentos da Polícia Federal e do Ministério Público, alimentaram a maior ofensiva oposicionista contra o governo Luiz Inácio Lula da Silva de seus oito anos de governo. Se não fosse Lula resistir ao primeiro impacto dessa amplificação – transformada em fatos altamente relevantes e comprometedores pela mídia (quando necessariamente não eram), jogadas aos partidos de oposição, que instrumentalizavam as informações jogadas ao público sem filtro e por fim tinham sua ação política emocionalizada pela mesma mídia – , ele teria sofrido um impeachment ou renunciado, como sugeriram líderes de oposição em recados mandatos ao governante. 

Essa primeira onda foi desmontada por pesquisas de opinião que deixaram claro para a oposição partidária que a popularidade de Lula era um elemento que não havia sido considerado: naquele exato momento, o presidente colhia o reconhecimento amplamente majoritário dos setores mais pobres da população pela ação de seu governo contra a pobreza. Lula apostou nisso e não renunciou. A oposição reconheceu isso e não levou avante o processo de impeachment.

A segunda onda de comoção foi criada no ano passado, às vésperas das eleições municipais, e desta vez teve como um dos protagonistas um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgaria em seguida o chamado “mensalão”. Em maio do ano passado, quando ainda não havia sido marcado o início do julgamento – e existia a hipótese de que fosse adiado, justamente para que a Justiça não contaminasse algo que não lhe é próprio, um processo político – a revista Veja apareceu com uma capa esquisita, em que Gilmar Mendes diz, mas parece que fala a terceiros, que o ex-presidente Lula sugeriu a ele ajuda para adiar o julgamento e, em troca, ofereceu a Gilmar “blindagem” na CPI do Cachoeira, que poderia comprometer o ministro com o esquema do bicheiro de Goiás. 

A conversa teria ocorrido no escritório de Nelson Jobim, em Brasília, e a proposta comprometedora ocorrido na copa, quando Gilmar e Lula foram tomar café (sem desprezar pequenos detalhes, para que a matéria pareça mais verídica, a matéria conta que Lula estaria comendo uma fruta quando falava a sós com o ministro do STF). Ninguém atentou para o fato de que, no escritório de Jobim, não existe copa, e não haveria qualquer lugar onde os dois pudessem conversar sem o testemunho do anfitrião. Jobim desmentiu, disse que esteve com os dois o tempo todo, e Lula, em nota à imprensa, disse que Gilmar mentiu – mas prevaleceu o estranho critério jornalístico de que a palavra do ministro do Supremo vale mais do que a palavra de outras duas pessoas presentes ao mesmo encontro.

Embora a história tenha parecido muito mal contada, serviu de pretexto, não apenas para o julgamento, mas para um fingido espírito de corpo que iria resultar numa condenação exemplar para os condenados, mesmo que a condenação ocorresse em cima de fatos que não tinham provas consistentes para isso. 

O jogo midiático foi completo: a TV Justiça tornou públicas barbaridades faladas por ministros, amplificadas novamente na mídia tradicional – que, por sua vez, com um corpo de especialistas a postos para analisar o julgamento on line, valorizou de forma invertida decisões muito importantes da maioria do plenário do STF. Em vez, por exemplo, de cobrar do Supremo a aceitação de provas, elogiou o plenário todas as vezes que ele omitiu esse direito aos julgados, a bem da celeridade do julgamento. A questão cívica colocada era condenar rapidamente, antes das eleições, os réus petistas, e não cobrar um julgamento justo para cada um dos julgados. Essa onda teve pouco efeito eleitoral, mas produziu o efeito prático de levar para a ribalta a maioria dos ministros do STF. Nem todos tiveram coragem de ir contra uma onda de opinião pública e uma montagem de espírito de corpo previamente montada justificou a decisão deles. 

O julgamento não deve ter sido tão honroso, todavia, para deixar para a história todo o seu relato. A transcrição dos anais das sessões omitiu, por exemplo, barbaridades faladas pelo ministro Luiz Fux, recém-chegado que foi tomado de uma indignação insólita para quem não entendia muito do processo. A pedido do próprio ministro. Outras impropriedades foram tiradas pelos seus pares. No acórdão, alguns fatos apresentados erroneamente por Barbosa como provas do crime, e que na sua cabeça avalizavam a afirmação de que o esquema mexeu com dinheiro público, simplesmente foram omitidos. 

O mundo jurídico até agora se manteve à margem desse processo – e a abertura de todos os precedentes trazidos pelo julgamento do “mensalão” é uma insegurança jurídica intolerável. As pressões que se iniciaram pelas bocas de Barbosa e Gilmar Mendes para que o STF proceda às prisões sem julgar os embargos; ou de Barbosa, para que o Supremo simplesmente desconheça os embargos infringentes, não tem nenhuma razão jurídica. Deve ter a intenção de forçar os pares a não rever uma frágil peça jurídica produzida pela maioria dos membros do Supremo Tribunal Federal que não honrará nenhum de seus pares no futuro.


Texto de Maria Ines Nassif, na Agência Carta Maior.

domingo, 26 de maio de 2013

O passado desnecessário


Os médicos brasileiros contrários à vinda de médicos estrangeiros para atuar no interior desassistido, assim como os policiais que se opõem à participação de procuradores e promotores em investigações, ainda não perceberam que desejam modelar o futuro com pedaços do passado de má memória até para eles.
Quando a crise social e econômica bateu aqui de verdade, muitos médicos se foram em busca de alguma oportunidade nos Estados Unidos. Os dentistas brasileiros descobriram Portugal. A propagação do conceito de serem mais atualizados tecnicamente, à época, lotou seus consultórios com a clientela portuguesa. E levou mais dentistas daqui.
Dos anos 1980 para os 1990, a batalha foi intensa e incessante, com envolvimento diplomático, dos governos, médicos e dentistas, meios de comunicação, entidades científicas de um lado e do outro. As relações entre os dois países ficaram difíceis.
Os portugueses cobravam que os dentistas brasileiros se submetessem, para validação dos seus diplomas, a exame baseado no currículo local. Os brasileiros respondiam que o currículo português incluía, em detrimento do maior domínio técnico, matérias médicas não adotadas no Brasil. Atritos e impasse por mais de dez anos.
A recusa à vinda de médicos reproduz exatamente a posição dos portugueses, à qual nenhum núcleo médico, odontológico, intelectual ou outro deu apoio no Brasil. A diferença entre os fatos de lá e os de cá está só nos motivos. Já foi dito que os médicos brasileiros defendem o seu mercado, a tal reserva de mercado. Só os portugueses fizeram isso.
Os médicos daqui não querem saber do interior atrasado, não importa que mercado haja aí e que condições sejam oferecidas. Mesmo as periferias das cidades são incapazes de atraí-los no número necessário, como prova a procura para os hospitais e postos públicos. A mera recusa à contratação de espanhóis, cubanos e portugueses despreza ainda outra realidade inegável: a dos milhões deixados a sofrimentos que até conhecimentos médicos elementares podem evitar ou atenuar.
Responder à proposta do governo com grosserias, como tem feito o Conselho Federal de Medicina, não disfarça outra realidade. Médicos de alta reputação e entidades científicas e de classe têm insistido na adoção, para os recém-diplomados, de exame à maneira do que faz a OAB para dar status de advogado aos bacharéis em direito. O pedido do exame é o reconhecimento de que a proliferação de faculdades tem diplomado levas de médicos com despreparo alarmante.
Já em defesa da exclusividade do poder investigativo pelas polícias, negando ao Ministério Público o direito de compartilhá-lo (é o que propõe a emenda constitucional 37), o delegado Roberto Troncon Filho, da Polícia Federal, expõe assim um dos principais argumentos dos policiais: "Meu medo é de concentração de poder no Ministério Público. Tenho medo de que esse avanço do Ministério Público nos leve a uma instituição, no futuro, assemelhada a uma polícia do passado, muito poderosa (...), que cometeu muitos abusos".
Por isso quer a concentração do poder na polícia? A propósito dessa concentração, nem precisamos voltar muito no passado. Vimos os espetáculos de arbitrariedade e autoritarismo que a Polícia Federal cometeu há poucos anos, para isso bastando que lhe fosse recomendado investigar não só pés-de-chinelo, mas também notáveis do empresariado.
Em palestra no Superior Tribunal Militar, na quarta-feira, a propósito da PEC 37, o senador Pedro Taques observou que as Comissões Parlamentares de Inquérito e, de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura, também o Judiciário têm poder de investigar. O mesmo se dá com a Receita Federal e com as secretárias de Fazenda. Logo, a Constituição não deu à polícia exclusividade do poder investigatório e a emenda 37 não poderia dá-la.
Além do mais, por que e para que deseja a PF tal exclusividade? A realidade sugere o oposto: a corrupção e a criminalidade em geral estão em nível de calamidade, e a ação conjunta polícia/Ministério Público é uma necessidade nacional.


Da coluna de Jânio de Freitas, na Folha de São Paulo

Mário Martins


Neste mês de maio, devemos comemorar o centenário de nascimento de Mário Martins, um dos jornalistas e políticos mais importantes do seu tempo. Atuando sempre na oposição às duas ditaduras, a do Estado Novo e a do regime militar, foi preso várias vezes, resistiu fisicamente à invasão do prédio da UNE, chegando a ser ferido.
Vereador pela Guanabara, deputado federal e senador, foi acima de tudo o jornalista de texto limpo que se marcou pela luta contra a corrupção e o totalitarismo.
Cassado pelo AI-5, preso novamente, nunca deixou de lutar pelo seu ideal democrático, tornando-se um padrão de ética que os próprios adversários respeitavam. Fundou um jornal ("Resistência") e colaborou ativamente, durante os anos de chumbo, com artigos que desnudavam os donos do poder.
Apesar de amigo de Carlos Lacerda, rompeu com ele e, mais tarde, com a UDN, preservando uma coerência política e moral que marcou sua trajetória tanto no jornalismo como na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
Quando, em 1964, fui processado pelo ministro da Guerra, general Costa e Silva, pela Lei de Segurança Nacional, fui obrigado a depor na 12ª Vara Criminal. Os jornais publicaram uma foto em que o juiz me obrigou a ficar em pé o tempo todo, como se condenado já fosse; não tive direito sequer a sentar no chamado "banco do réu".
O único jornalista que se manifestou publicamente a meu favor, em crônica no "Jornal do Brasil", foi Mário Martins. Seu artigo foi incluído no seu livro "Em Nos- sos Dias de Intolerância", que registra os atos e fatos daquele período de forma impecável, livro indispensável a quem procurar sa- ber como o golpe de 64 foi desfechado e oprimiu, por mais de 20 anos, o povo brasileiro.


Texto de Carlos Heitor Cony, para a Folha de São Paulo

Em Portugal, cortes criam fenômeno da pobreza instantânea


Em uma sala vaga nas garagens da empresa de ônibus de Lisboa, a comissão de trabalhadores arranjou aleatoriamente o básico: litros de leite, latas de sardinhas, pacotes de salsichas, potes de feijão-branco, macarrão e várias dezenas de pacotes cilíndricos de biscoitos, empilhados como troncos em uma serraria.
Há meses, os condutores de ônibus e de bondes de Lisboa doam e armazenam alimentos, não para associações de pobres ou campanhas beneficentes de bairros da periferia. Isto é mais simples e mais brutal: são para eles mesmos, para companheiros que, apesar de terem trabalho e um salário mensal, passam fome no fim do mês.
Os constantes cortes salariais que afetam sobretudo funcionários públicos em Portugal, os aumentos de impostos decretados a toda a população assalariada e a política de ajustes permanentes do governo do conservador Pedro Passos Coelho (pressionado pela troica), que corrói continuamente o país, faz que a imensa maioria desses trabalhadores - funcionários públicos, afinal - vão ao limite em seus gastos, alcançando o dia 31 do mês quase por milagre.

Em um flash

Assim, basta um revés qualquer, há alguns anos contornável (um divórcio, o desemprego do cônjuge, uma série de gastos imprevistos...), para se transformarem diretamente em pobres. Um exemplo de como a tateante classe média portuguesa se torna classe miserável de um dia para o outro, sem escalas intermediárias. Como no caso de Evaristo.
Evaristo Paulo é magro, alto, amável. Tem 38 anos, veste uma jaqueta preta de couro e trabalha como motorista de ônibus em Lisboa, oito horas por dia, cinco dias por semana. Usa o cabelo curto e um brinco na orelha. Tem uma filha de 6 anos. Um homem normal.
Há algumas semanas, sua chefe alertou a comissão de trabalhadores para lhes informar simplesmente que Evaristo passava fome e que deviam ajudá-lo, que talvez por desconhecimento ou por vergonha não havia procurado a sala dos pacotes de espaguete.
Há dois anos, Evaristo, que desde 2007 está na folha de pagamentos da companhia de ônibus de Lisboa, dependente diretamente do Estado, ganhava 1.100 euros por mês. Agora, devido às reduções salariais, não chega a 800. Divorciado, paga uma pensão e a cada 15 dias visita sua filha, que vive com a mãe em uma cidade situada a 150 km de Lisboa.
"Prefiro ficar sem comer do que sem gasolina para fazer essa viagem", explica. Um dos membros dessa comissão, Paulo Gonçalves, entrou em contato com ele. Desde então, quando Evaristo precisa, vai à sala da comida. Como muitos outros.
Gonçalves explica que implementaram o banco de alimentos no Natal, porque começaram a perceber que muitos companheiros estavam passando mal. "Há quem tenha mulher desempregada, sem receber auxílio-desemprego porque não tinha contrato, muitas trabalhavam em restaurantes que fecharam ou em lojas que não dão mais benefícios. Sei de cônjuges de companheiros que foram demitidos por uma mensagem de celular. As coisas estão assim", explica.
Desde o Natal já atenderam mais de 80 companheiros, em uma turma de cerca de 2 mil trabalhadores. Com uma caminhonete, cada semana um par de membros da comissão percorre diversas estações e garagens onde outros companheiros deixaram os alimentos, a fim de reuni-los todos nesta sala situada no bairro de Santo Amaro, perto do início da ponte 25 de Abril.

De 1.200 a zero

Os condutores, como todos os funcionários públicos portugueses, viram se volatilizar por decreto um de seus dois pagamentos extras anuais, e outro diluir-se em pagamentos mensais que por sua vez desapareceram devido aos impostos. Também foram eliminadas gratificações e complementos. O resultado é uma perda média de 300 a 400 euros por mês em salários mensais de 1 mil a 1.200 euros.
Há dois meses o Tribunal Constitucional português ditou que os pagamentos extras não podiam ser retirados e agora o governo estuda como aplicar a sentença enquanto se arbitram novas medidas alternativas para que a mudança não represente um empecilho no caminho draconiano para a meta de déficit definido pela Europa.
Nem Evaristo nem Gonçalves confiam muito em que lhes devolverão seu pagamento extra. Têm certeza de que o ministro das Finanças, Vítor Gaspar, encontrará outra fórmula jurídica para que esse dinheiro jamais chegue a seus bolsos. Passos Coelho também anunciou uma nova onda de cortes, que durarão três anos e afetarão, sobretudo, funcionários públicos e aposentados.
De modo que esses condutores, que sentem saudade de um passado remoto de condições trabalhistas toleráveis, abominam um presente de pesadelo e temem cada dia mais um futuro imprevisível.
Enquanto isso, acumulam latas e víveres não perecíveis na sala desocupada das garagens, sabendo que a loteria da má sorte e a desgraça que coube agora a Evaristo pode tocar amanhã qualquer outro.
"Às vezes levamos comida para a casa de alguém porque tem vergonha de que os outros companheiros os vejam pedir. Outros vêm aqui com suas mulheres e seus filhos, e isso nos parte o coração", conta Gonçalves.
Depois acrescenta, ao lado de uma pilha de latas de atum:
"Se trabalhando normalmente não dá para viver com um pouco de dignidade, então diga-me: o que estamos fazendo aqui?"
Reportagem de Anotonio Jiménez Barca, para o El País, reproduzida no UOL. Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

sábado, 25 de maio de 2013

Novos terroristas não são assim tão novos nem são terroristas


Os recentes atos de violência em Boston e Londres ajudam a popularizar o termo "novos terroristas" para tipificar uma tendência de atentados praticados por militantes islâmicos contra potências ocidentais no seu próprio território.
Algumas características dessa tendência, além da motivação do ressentimento religioso, são: a organização individual, a escala artesanal das ações, a conexão virtual com redes terroristas internacionais, a residência local dos militantes etc.
Uma análise detalhada pode sugerir dúvidas sobre a validade dessa caracterização, permitindo o questionamento da novidade e da dimensão terrorista.
Londres é um exemplo: por mais desumana e trágica, e mesmo que com uma motivação política e religiosa, a morte do militar britânico dificilmente seria classificada como terrorismo, ao não envolver a população civil de forma indiscriminada.
No atentado com "panela-bomba" em Boston, ainda parecem incertas as ligações com redes internacionais como Al-Qaeda ou grupos militantes do Daguestão e da Tchetchênia. Ou seja, atos praticados por cidadãos muçulmanos que podem não ser terroristas ou não ter motivação islâmica.
Tudo isso poderia ser contextualizado nas tendências contemporâneas de fragmentação das militâncias, expressas por redes virtuais e institucionais que aproximam os envolvidos.
Uma militância fragmentada pode se desesperar quando motivada pelo sentimento de impotência, diante da diminuição das liberdades civis e do controle policialesco no plano doméstico, aliado a situações de grande poderio militar e de tentativas de derrubada de governos locais verificadas na bacia do Mediterrâneo.
São atos que poderiam ser entendidos também em outros contextos, como em um recorte menor dentro da onda generalizada de descontentamento e desesperança vistos nos EUA e na Europa, motivados pela recessão, inspirando contestação, com ou sem ideologias, como os saques em cidades europeias e o "Occupy Wall Street".
A tentativa de releitura desses atos, no sentido de caracterizá-los como uma nova estratégia terrorista articulada, sempre conectada a uma rede internacional abstrata (que ocupa o espaço deixado pelo inesperado desaparecimento da ameaça da Guerra Fria), contribuiria para a restituição de inimigos externos visíveis e úteis para a coesão interna em tempos difíceis.


Texto de Fernando Padovani, para a Folha de São Paulo. Destaques do blogueiro.

País real


Tendo se espalhado qual rastilho de pólvora por longínquos recantos nacionais no último fim de semana, o boato de que o Bolsa Família (BF) ia ser extinto deu visibilidade a aspectos em geral encobertos do atual quadro brasileiro.
Em primeiro lugar, o episódio mostrou a importância vital que o benefício ainda tem para uma parte da população. Em questão de horas, a falsa notícia produziu uma corrida bancária, levando a quase 1 milhão de saques. A ansiedade, a premência e a energia da reação indicam tratar-se de item de primeira necessidade.
Alguns teimam em esquecer a extensão da carência. Para refrescar a memória: a parcela atendida é de 13,5 milhões de famílias ("Valor", 26/10/2012), atingindo cerca de 54 milhões de habitantes. Se a eles somarmos o grupo dos que nem sequer estão cadastrados (perto de 2,5 milhões de pessoas), vê-se que um terço da nação não é apenas pobre, mas muito pobre.
Em segundo, fica clara a pertinência regional do programa. Não há de ser acaso o fato de que dos 13 Estados atingidos pela mentira, 12 pertenciam às regiões Norte e Nordeste. Afora o Rio de Janeiro, apenas unidades daquelas áreas mobilizaram-se para atender à suposta emergência. Embora válido e usado no país todo, o BF ganhou contornos estruturais nas duas regiões menos aquinhoadas pelo progresso econômico.
Terceiro. O episódio produziu uma rápida, mas potente, amostra do que aconteceria se algum doido resolvesse pôr fim ao benefício. A depredação dos caixas eletrônicos quando não era possível sacar o dinheiro demonstra a revolta latente. Por mais favorável ao corte de gastos públicos, que político estaria disposto a arrostar a ira popular?
Por fim, há o efeito específico do BF sobre as mulheres pobres, historicamente submetidas a uma dupla opressão, que se podiam ver nas imensas filas uma semana atrás. Em livro recente de Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani ("Vozes do Bolsa Família", São Paulo, ed. Unesp, 2013, cujo lançamento se dará em junho), uma entrevistada do litoral de Alagoas disse aos pesquisadores: "[...] a gente depende de um direito do governo, não é um favor, porque a gente paga imposto".
A noção de que se trata de relação de duas mãos desmente a ideia de que a transferência de renda possa ser confundida com esmola, como às vezes aparece na visão de críticos do BF. A esmola humilha o pedinte. O presente auxílio, mesmo que possa ser entendido como favor governamental, o que por vezes também aparece nas entrevistas, desencadeou mudanças no sentido da autonomia das mulheres que o recebem. E elas não parecem dispostas a abrir mão, em nenhuma hipótese, da nova condição alcançada.


Texto de André Singer, na Folha de São Paulo.

Exemplo a seguir


A Justiça obrigou a gravadora EMI a entregar a João Gilberto a posse das fitas masters de seus LPs "Chega de Saudade" (1959), "O Amor, o Sorriso e a Flor" (1960) e "João Gilberto" (1961) e do compacto duplo "Orfeu do Carnaval" (1959). Por causa de um entrave jurídico, o Brasil está há 20 anos impedido de ouvir essas gravações. O prejuízo cultural é incalculável, maior até do que qualquer consideração econômica.
A vitória de um artista isolado sobre uma multinacional deveria alertar os outros cantores, músicos e compositores brasileiros do passado (ou seus herdeiros e representantes) para a possibilidade de também reivindicar das gravadoras a posse de seus discos. E por que não, se está provado --como qualquer pesquisador ou historiador se prontificará a atestar-- que elas não têm nenhum interesse por esse material e nem sabem que ele existe?
Cantores como Aurora Miranda, Blecaute, Carlos José, Gilberto Alves, Gilberto Milfont, Luiz Claudio, Marilia Batista, Marisa ("Gata Mansa"), Odete Amaral, Orlandivo, Roberto Paiva, Rosana Toledo, Sonia Delfino, a dupla Joel e Gaúcho, o Trio Nagô, o Quatro Ases e Um Coringa, o Coral de Ouro Preto e muitos outros, vivos ou mortos, não têm seus discos lançados há 40 ou 50 anos. Nenhum deles jamais saiu em CD no Brasil.
O mesmo quanto a músicos como o saxofonista Booker Pittman, o acordeonista Chiquinho, o gaitista Edu, a violonista Rosinha de Valença, o violinista Fafá Lemos, os pianistas Gadé, Carolina Cardoso de Menezes, Tia Amélia, Fats Elpidio e Luiz Reis, os maestros Zaccarias, Carioca e Cipó, e muitos, muitos mais.
Para as multinacionais Universal, EMI, Sony e Warner, esse gigantesco catálogo nacional, sobre o qual estão sentadas e imóveis, já não significa nada. Para o Brasil, ele representa a sua memória musical e a própria história.


Texto de Ruy Castro, para a Folha de São Paulo.