As democracias se caracterizam pelo equilíbrio de Poderes, mas isso não significa que os três tenham a mesma importância. O Legislativo é o Poder democrático por excelência, e cabe a ele a palavra final em todas as questões, através das emendas. Entretanto, o que vemos no Brasil é o Judiciário -- Poder burocrático por excelência -- tentar assumir essa posição, o que é inaceitável do ponto de vista da democracia.
O equilíbrio de Poderes, ou "checks and balances", é a tese através da qual filósofos liberais do século 18 buscaram limitar o Executivo, o monarca absoluto. Mas, além disso, é uma tese que visou limitar o Parlamento -- reflexo da oposição do liberalismo à democracia no século 19 a partir do argumento de evitar a "ditadura da maioria".
Há tempos esse argumento, que servia para a burguesia rejeitar o sufrágio universal, mostrou-se equivocado. A maioria alcançada em alguns momentos por sociais-democratas que representavam os trabalhadores jamais buscou exercer a ditadura quando ganhou eleições.
Mas o medo da democracia continua a assombrar liberais, que, apesar da crítica ao Estado e à sua burocracia, sempre buscam transferir poderes; do Executivo para agências burocráticas supostamente "independentes"; e do Legislativo para o Supremo Tribunal Federal.
Ao julgar a constitucionalidade das leis e interpretar os dispositivos da Constituição que não são claros, o Poder Judiciário exerce um papel que lhe é próprio. Mas o que estamos vendo é algum dos ministros usarem o "clima favorável" criado por um liberalismo antidemocrático ainda dominante para se impor sobre o Parlamento. Vimos dois movimentos recentes nessa direção.
Primeiro, o Supremo não hesitou em interferir na ordem em que os projetos de lei são votados, exigindo que venham primeiro as medidas provisórias. Agora, um ministro concedeu liminar para impedir que continue a ser discutido no Senado projeto de lei que inibe a criação de partidos políticos. Usou como justificativa o fato de que o projeto estaria sendo aprovado "de afogadilho".
O Brasil tem um bom Judiciário, um Poder meritocrático formado por magistrados de elite. Já o Congresso está permanentemente nas manchetes, porque é constituído de um número grande e heterogêneo de parlamentares e reflete qualidades e defeitos da sociedade brasileira.
Mas não é razoável que, por essa diferença de constituição, a sociedade se deixe convencer por um liberalismo que manifesta preferência pelo Poder Judiciário e desgosto com a política e a democracia.
O Congresso aprovou na Comissão de Justiça da Câmara emenda constitucional que exige maioria de quatro quintos para o Supremo declarar leis inconstitucionais -- algo discutível, mas razoável. Creio ser justo que esteja clara para o Supremo a inconstitucionalidade de uma lei já duramente discutida.
Receio que alguns ministros do Supremo estejam se inspirando na Suprema Corte dos Estados Unidos, mas lá seus membros não têm alternativa, já que a Constituição se tornou uma espécie de tabu, e o Congresso perdeu capacidade prática de emendá-la. No Brasil não é assim. Devemos saudar as tentativas para contornar a crise entre os dois Poderes, mas sem perder de vista que, se há um que precisa ser defendido (e sempre criticado), este é o Legislativo. Os outros dois não estão ameaçados.
Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira, publicado na Folha de São Paulo.
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