domingo, 28 de fevereiro de 2021

O grande equívoco

O amor é um equívoco. Todas as pulsões do amor são um equívoco. Mas esse equívoco é a única coisa que existe. A voluptuosa Anita Ekberg, em “A Doce Vida”, entra na Fontana di Trevi e chama Marcello.

“Marcello, come here!” E o que Marcello faz? Tira os sapatos, entra na água e, andando lentamente em sua direção, resignado, como que seguindo um mandado da espécie, diz: “Estamos todos equivocados”.

Ele tem razão. Estamos todos equivocados e caminhamos para o equívoco do amor, feito zumbis. Mas que equívoco mais saboroso, mais ardente, mais poderoso. As pessoas estão mortas e apagadas até que, de repente, se apaixonam e nelas se acendem todas as luzinhas da árvore de Natal.

Sentem-se desejadas, voltam a desejar, vão para a cama com alguém que as faz sentir algo que nunca ninguém as tinha feito sentir antes. Depois da poeira cósmica, a experiência vital passa a ter novas paisagens. E esse amante já se torna uma droga pesada, uma picada no sangue, e sua ausência, um desassossego. Queira Deus que você se apaixone, diz uma maldição cigana.

Vou escrever histórias sobre gente assim, que faz coisas absurdas por amor, como mariposas se jogando na fogueira. Gente que se entrega, apesar de todas as advertências. Vinte anos atrás, uma amiga me perguntou sobre um sujeito que eu sabia que era um desastre, um compêndio de infelicidade, um entroncamento de problemas.

Fiquei um bom tempo falando mal desse sujeito para ela. Acenei diante de seus olhos com todas as bandeiras vermelhas. Hoje eles vivem juntos numa espécie de fúria conjugal irrefreável e extenuante. Quem era eu para lhe dizer que ela estava errada? Terá sido a experiência border o que lhe deu coragem?

Será que eu estava apaixonado por ela? O desejo é um animal que se move na escuridão. Vai tateando nas sombras. Não podemos guiá-lo, nem matá-lo, nem freá-lo. E atrás de si ele vai deixando um rastro de infelicidades, traições, humilhações, brigas, fotos, convivências, corações despedaçados, mensagens, contaminações, abortos, filhos, divórcios, mudanças, migrações, lágrimas.

E é assim que tem que ser. Porque é o amor ou nada. O contrário da morte não é a vida, mas o sexo, diz a escritora Milena Busquets. Vamos para a cama para nos fundir com o outro, para tentá-lo, para sentir que somos quase infinitos, porque continuamos no outro, no beijo, no abraço, parece que não existe mais fronteira, que espreitamos a completude, devoramos, somos devorados, forma-se a roda infinita, uma imortalidade que brilha de repente, e do mesmo jeito que brilha, se apaga, e ficamos com os corações a galope, jogados na cama, porém outra vez divididos nessa fusão que não aconteceu.

O pai de uma namorada minha da adolescência nos flagrou uma vez, afogueados e tirando a roupa. “O que vocês estavam fazendo?”, perguntou. Querendo deixar a situação mais leve, fiz uma piada. Estávamos fundindo o átomo, acelerando as partículas. Ele não gostou. Quando fui embora, desceu comigo no elevador e abriu a porta da rua para mim sem dizer uma única palavra.

Nos dias de hoje, em que o outro é um corpo infeccioso, virótico, tão diferente da foto do perfil, tão hiper-real, incontrolável, com cheiros, problemas, com olhos de medo, por que as pessoas continuam a se atirar, nuas, em cima das outras? Para escapar do quê? O equívoco continua acontecendo, apesar de tudo. Embora doa e seja uma tragédia, nos esvaziamos no amor.

Uma amiga sempre me conta de seus encontros no Tinder. Outro dia, me disse: Quando nos despedimos, ele fechou a porta bem devagar, mas aliviado, como quem desliza o dedo na tela do aplicativo já sabendo que nunca mais vai te ver de novo.


Texto de Pedro Mairal, com tradução de Lívia Deorsola, publicado na Folha de São Paulo

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